2 de outubro: a Madrugada dos Insones
Domingo, 2 de outubro, 4h26 da manhã.
Um ruído qualquer ao lado de fora de casa me chamou a atenção. Pode ter sido um gato, um alienígena em missão de pesquisa ou, quem sabe, o peso da consciência de classe desabando sobre algum vizinho.
Confesso que já não vinha dormindo bem. Ansiedade por causa das Eleições, que começariam em poucas horas. Acendi o abajur e percebi que não era a única pessoa na mesma condição. Meu marido estava insone, olhos esbugalhados. Não sei quem de nós levou o maior susto.
Parte pela cena de horror, parte pela ansiedade, resolvi fazer um chá de camomila, levando minha taquicardia para passear. Enquanto aguardava a infusão esfriar um pouco, resolvi dar uma olhada no Twitter, vício maldito, onde sou figurinha carimbada.
Foi aí que percebi o filme de terror que estava se desenhando. Dezenas de pessoas, padecendo de insônia, tuitavam freneticamente, de todas as partes do país. Todos relataram não conseguir pregar o olho por causa da ansiedade em relação ao horário de votar.
Ninguém dorme
Comecei a puxar conversa, já que compartilhava da mesma sensação. No peito, o mesmo tipo de angústia eleitoral que só havia sentido uma única vez, na primeira vez em que votei para presidente, no longínquo 1989. Sim, naquela mesma onde o Caçador de Marajás foi eleito, dando origem a um dos pesadelos da nossa história moderna.
Conversa vai, conversa vem, comecei a conjecturar sobre essa epidemia de ansiedade. Fique claro que minha visão pode ter um tanto do meu viés profissional de jornalista.
Havia de tudo. Gente que estava em casa, debatendo-se no colchão. Gente que estava nas ruas, ainda bebendo naquele horário (sim, porque a Lei Seca foi bem facultativa nesse pleito), e gente que estava bebendo em casa mesmo. Muita gente tentando assistir a alguma coisa pra desanuviar, a maioria sem sucesso.
Um bom número de eleitores insones e boêmios, torcendo por uma vitória no primeiro turno (que não veio), combinava de se encontrar nas seções eleitorais. Gente dizendo que sairiam logo de casa para estar nos portões das escolas antes da abertura, para não pegar fila. Filas que foram destaque destas Eleições, apesar do grande número de abstenções.
A coisa não se resumia apenas ao público geral. Os famosos também padeciam. Tanto que foram pauta para uma reportagem da Folha de São Paulo, destacando o humorista Paulo Vieira.
Enlouquecimento progressivo
Depois de quatro anos de um governo confuso, para se dizer o mínimo, que fez de tudo para atacar a lógica e o bom senso, e ainda pontuar o suficiente para chegar a um segundo turno, é natural que o cansaço psicológico do público se manifestasse em algum momento.
No calor do momento, lancei uma enquete no Twitter. Perguntei: “você teve insônia na madrugada de sábado para domingo por causa das Eleições 2022?”. 71% das pessoas confirmaram, contra 29% que conseguiram desfrutar de um soninho bom. Fosse uma eleição, a Insônia teria levado no primeiro turno.
Vivemos dias tensos, num jogo perigoso onde a polarização transcendida em ódio reprimido, proporcionou espetáculos de barbárie e crueldade, na sua grande maioria perpetrados por apoiadores do atual ocupante da cadeira presidencial.
Aguerridos e motivados a defender o indefensável, indivíduos ungidos pelo discutível poder conferido pela camisa amarela, que outrora nos deu tantas alegrias, passaram a atacar de modo sistemático todo e qualquer que diferisse de seu ponto de vista. Sem levar em consideração que fosse militante, pesquisador, jornalista. Ou mesmo uma jovem grávida, ferida enquanto fazia seu trabalho empunhando a bandeira do candidato adversário.
Dias pesados e difíceis, de um período que não parecia mais ter fim, e ganhou uma prorrogação. Toda a pressão resultou na madrugada dos insones. Onde, silenciosamente, grupos distintos se prepararam para defender suas ideias, muitos temendo usar as cores que os identificariam com o candidato de sua escolha, possível gatilho para mais violência.
Manifestos silenciosos
Saímos de casa trajando preto. Como luto, por aqueles dias onde éramos um país mais tolerante, ou quem sabe, mais hipócrita.
Me lembrei de quando fizemos algo bem parecido, na ocasião em que aquele ex-presidente, o tal Caçador de Marajás, pediu para quem o apoiasse ir às ruas trajando verde e amarelo. Ou que colocassem fitinhas verde e amarelas nas antenas dos seus veículos.
Nunca se viu tanta gente trajando preto como naquela ocasião. Idem nas antenas dos carros. Daquela vez, não houve apropriação dos símbolos nacionais. Daquela vez.
Eu acreditei que, no final do domingo, a tensão se dissiparia, botando fim a um dia amargo de tensão e insegurança. Como de hábito (quando não estou trabalhando na cobertura jornalística da votação), sentei-me no sofá, controle remoto na mão. CNN Brasil, Globo, Band, Cultura; CBN, Bandnews e Itatiaia no radinho de pilha; admito que até umas passadinhas pela TV Jovem Pan para entender como encaravam as coisas por lá. Faz parte do ofício. Acompanhei boa parte da análise genial da equipe do Foro de Teresina, da Revista Piauí.
Voto. A. Voto.
Não acabou
Errei. Feio e rude. Aparentemente, uma migração de votos maior do que a esperada fortaleceu o atual ocupante do Planalto e jogou a disputa para um segundo turno. A tensão não passou, foi prorrogada. Como disse Márcio Gomes, um dos âncoras da CNN, “se essa apuração foi emocionante, imagina como será a próxima”.
Prevejo um mês social e politicamente difícil. Não tenho ideia de como as coisas se desenrolarão. Afinal, mais do que o futebol, a política é uma caixinha de surpresas. E, se fôssemos comparar com uma modalidade esportiva, caberia muito mais um campeonato de luta livre. Não os organizados UFC de hoje, mas aqueles com lutas previamente ensaiadas, com heróis e vilões, tão queridos por aqui nos anos 1960 e 1970, e populares até hoje no México. Um espetáculo menos esportivo e mais circense.
A ansiedade, tema deste artigo? É claro, já garantiu sua vaga. Mesmo sem ser convidada. São as Eleições mais importantes desde aquela de 1989; em jogo, muito, mas muito mais do que já se jogou até agora.
Nossa sociedade está adoentada sob diversos prismas, em diversos aspectos. E se tem uma coisa que prevejo, lá para a madrugada de 30 de outubro, é um alto consumo de tranquilizantes, calmantes, chás de camomila e muito suco de maracujá.
O Reino dos Sonhos estará novamente, inquieto.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.