20 anos de O Senhor dos Anéis no Cinema
Há 20 anos, O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel estreou nos cinemas de todo o mundo. E as vidas do cinéfilo, do nerd, do jogador de RPG, do fã de literatura, do Peter Jackson e do cidadão médio da Nova Zelândia nunca mais foram as mesmas.
A Fantasia precisava de um Necromante
Apesar de Star Wars tecnicamente (muito tecnicamente) ser uma fantasia, e não uma ficção científica, o ramo do gênero conhecido por “espada e feitiçaria” não teve muita expressividade depois dos anos 80.
A década nos deu obras de sucesso questionável como Willow (dirigido por Ron Howard!) e A Lenda (dirigido por Ridley Scott!). Mas também produziu sucessos como Labirinto (de Jim Henson!) e Conan, o Bárbaro (de John Millius!). E por mais que sejam filmes cheios de boas intenções, nenhum se tornou um ícone da geração como a trilogia de Luke Skywalker fizera.
Fantasia era isso: Músculos lustrosos. Divulgação - via IMDB
Os anos 90 foram uma época mais cínica. Viajar para terras místicas não era algo tão desejado. O mistério estava no mundo dos computadores. Filmes estrelando hackers apareceram aqui e ali, culminando no grande Matrix em 1999. Ano, inclusive, em que Star Wars - Episódio I: A Ameaça Fantasma também arrasou quarteirões no cinema.
Na mesma década tivemos Coração de Dragão, um esforço honesto de encontrar sucesso ao misturar lendas arturianas com um lagarto voador de sotaque escocês. Também foram lançados tipos diferentes de fantasia (em específico, as que saíram da cabeça do Tim Burton). E outros menos interessantes. Você lembra do que fizeram com Dungeons & Dragons no cinema? Porque não esqueceu disso ainda?
O universo dos magos e aventureiros estava concentrado somente no rolar de dados de 20 lados e na literatura, nos braços de Moorcock, de Lewis, de Jordan… de Tolkien.
Surge uma esperança no leste
Você lembra de algum outro filme do Peter Jackson?
O neozelandês vinha de uma escola muito semelhante à de Sam Raimi (de Evil Dead e a trilogia dos anos 2000 do Homem-Aranha). Orçamento baixo, sensibilidade mais baixa ainda.
É difícil até de descrever. Divulgação - via IMDB
Fez alguns filmes muito trash de horror, envolvendo monstrengos bizarros e violência extrema. Mas nunca mirando no realismo. Jackson queria dar risada junto com a audiência de suas criações.
Sua primeira incursão no que aqueles que nunca se divertem chamam de Cinema Sério foi em 1994, com Almas Gêmeas. É o filme que lançou Kate Winslet ao estrelato, e contava a história real de um romance entre duas jovens que acabou no caso de assassinato mais famoso da Nova Zelândia.
Antes de mandar o Leo para o fundo do mar, Kate Winslet visitou a Nova Zelândia. (Miramax - via IMDB)
Mas em 1996, PJ lançou Os Espíritos, estrelando Michael J. Fox no papel de um vidente que aplica golpes ao mandar seus amigos — fantasmas de verdade — assombrarem a casa de gente inocente.
Por um lado, Jackson mantinha-se próximo às suas raízes. Um horror com elementos de comédia, violento e cheio de carisma. Até escalou a figurinha carimbada de filmes B, Jeffrey Combs, num papel secundário. Por outro lado, fez um filme com efeitos especiais de primeira, flertando com a construção de mundos fantásticos em alta escala pela primeira vez.
Nessa época, já começou a fazer a lição de casa para propor uma ideia ousada aos estúdios: filmar o clássico infilmável O Senhor dos Anéis. Em dois filmes.
Pensou na estratégia inovadora, para a época, de produzir ambas as partes de seu épico ao mesmo tempo.
Cenas do segundo filme seriam planejadas para rodarem no começo das filmagens. O que pudesse facilitar a produção como um todo, ao invés de manter uma certa “cronologia narrativa”.
Um santo executivo pensou diferente. "Não são três livros? Por que você não lança 3 filmes?”
Peter Jackson conseguiu, assim, 250 milhões de dólares para produzir sua trilogia. Era uma aposta muito alta da New Line Cinema. Mas sabemos que o final da história é feliz.
Como adaptar um clássico da literatura
A responsabilidade era imensa. Não só por conta do dinheiro envolvido, mas por causa das gerações de fãs, que sonhavam em ver o mundo imaginado por elas com tanto carinho, ter um tratamento de respeito.
Jackson e as produtoras e roteiristas Phillipa Boyens e Fran Walsh tiveram a coragem que muitos não teriam. Cortaram personagens inúteis (vamos lá, fã. Ninguém sentiu falta do Tom Bombadil), trouxeram ritmo e graça aos personagens (outra coisa não exatamente fácil de ler na obra original), e mantiveram o foco numa fantasia de dia-a-dia.
A direção de arte, que contou com ilustradores respeitadíssimos da velha guarda como John Howe e Alan Lee, povoou aquele mundo com a exata medida de realismo para que o público mergulhasse e acreditasse que aqueles lugares poderiam existir.
Sério. Que bruxaria é essa? (Reprodução, via IMDB)
Em 1993, Jackson criou a Weta Digital (que passou para mãos um pouco mais pragmáticas recentemente). E o que a empresa de efeitos conseguiu com O Senhor dos Anéis foi inacreditável.
A primeira vez que você vê um Elijah Wood de 1 metro de altura interagindo com um Ian Mckellan de estatura normal, você não tem mais escapatória.
Jackson e sua trupe conseguiram diminuir parte de seu elenco principal pela metade, e dificilmente (até hoje) enxergamos defeitos no resultado.
O elenco, aliás, cheio de veteranos e novatos, foi outro ponto forte. Não há como dar importância para a história se não acreditarmos na inocência do Frodo de Wood ou na sinceridade do Aragorn de Viggo Mortensen. Mckellan deu vida ao mago mais famoso do mundo depois de Merlin com vigor e humor, levando vários prêmios e uma indicação ao Oscar para casa.
E ainda temos Cate Blanchett, Sean Bean, Hugo Weaving, Ian Holm, Sean Astin, John-Rhys Davies, Christopher Lee, além dos estreantes Orlando Bloom, Billy Boyd e Dominic Monaghan.
Frodo vai pra vala e puxa o bonde do Anel. (Reprodução - via IMDB)
A canção dos elfos
Além de ter em seu time os talentos fotográficos de Andrew Lesnie, Jackson escalou um egresso de filmes de horror que nem ele próprio.
O compositor da trilha de A Mosca, O Silêncio dos Inocentes e Seven - Os Sete Crimes Capitais foi o responsável por preencher de música o que sobrava da nossa imaginação. E o que Howard Shore conseguiu alcançar se tornou outro ícone do Cinema. A trilha de O Senhor dos Anéis é capaz de traduzir a carga espiritual e histórica que a Terra-Média, como um lugar, carrega.
Ele não só desenvolveu temas diversos e conseguiu modelar e compor a união destes em diversos pontos, como também fez isso dando personalidade ao filme por completo.
Todos estes esforços culminam na cena que fechou o primeiro trailer do filme: a Sociedade do Anel, recém formada, atravessando rochas em direção à sua missão.
Você consegue ouvir esta imagem. (Reprodução - via IMDB)
E a Terra-Média nunca mais foi a mesma
A Sociedade do Anel é raras vezes tratado como um filme único. Ele é parte de uma trilogia, inseparável, e é bom que seja. Apesar da produção ter acertado muito bem certas manobras de estrutura, deixando os filmes funcionarem sozinhos, eles precisam uns dos outros para “chegar lá”.
E por causa dessa trilogia, o mundo da fantasia no cinema (e na TV), como um todo, voltou a existir. Um sem número de versões genéricas começou a pipocar (alguém lembra de Eragon?).
Não só isso, mas encarar a fantasia como algo rentável (e até respeitável!) voltou a ser algo real. Não teríamos Avatar, Game of Thrones, e muito menos A Roda do Tempo e quem sabe nem o Universo da Marvel nos Cinemas por aí se O Senhor dos Anéis não existisse. Aquela feitiçaria toda conseguiu mostrar que inventar mundos é bastante rentável.
Por falar em Avatar, há de se falar no impacto da própria mídia do Cinema. A trilogia do Anel sacramentou a computação gráfica como opção para fazer filmes trilharem a última milha.
O que os dinossauros de Jurassic Park começaram, o Gollum de Andy Serkis finalizou. Personagens que só existem pela união dos esforços de atores talentosos e uma equipe incansável de artistas dos pixels. Acharam a maneira de traduzir os trejeitos de atores nas criaturas fantásticas, canalizando também a alma e a fúria deles.
O Senhor dos Anéis não mudou só o Cinema, mas os cinéfilos. Quando a trilogia foi lançada em DVD, os materiais extras ganharam quase tanta importância quanto os filmes em si.
Centenas de milhares de jovens aspirantes, apaixonados pelo poder da sétima arte, puderam ter seus primeiros estudos sobre o formato tendo como professores Jackson e cia. São dúzias de horas sobre o processo criativo, investigando as decisões, os problemas e os detalhes da produção suntuosa.
Dessa forma, O Senhor dos Anéis não ganhou um lugar quentinho no coração de todos só porque ocupou a imaginação de uma geração inteira, mas também porque entrou nos sonhos de carreira de vários artistas. Muitos profissionais do cinema estão no mercado hoje por conta da Trilogia.
Paralelamente, a Nova Zelândia foi transformada pelo sucesso dos filmes.
Peter Jackson conseguiu transformar o arquipélago onde nasceu numa febre turística sem precedentes. A beleza natural, aparentemente intocada das ilhas, é o convite perfeito para quem queria viver ainda mais tempo dentro daquele mundo.
Além de, é claro, transformar a Nova Zelândia num pólo de produção cinematográfica. Jackson conseguiu atrair o olhar de muitos produtores, incluindo o mestre James Cameron, que está lá há pelo menos 46 anos produzindo as continuações do já mencionado Avatar.
E a trilogia de O Hobbit?
Não vamos falar sobre O Hobbit.
Depois da Terceira Era
O Senhor dos Anéis foi produzido, filmado e lançado num mundo completamente diferente.
O século 21 tinha acabado de começar, naquele 11 de setembro de 2001. As cicatrizes sociopolíticas dos anos 90 estavam dando as caras.
O cinema digital e as facilidades que a computação gráfica trazia estavam começando a se tornar o jeito certo de fazer blockbusters. O cinema independente tinha pouca expressão (se comparado com hoje), e a maneira com a qual víamos o “mundo do entretenimento” era definitivamente outra.
Vinte anos, um MCU e uma pandemia depois, o cinema é outro. Precisamos de mundos fantásticos às vezes mais para escapar da realidade do que para nos entreter.
John Ronald Reuel Tolkien não queria que fugíssemos da realidade. Nem queria nos ensinar nenhuma lição profunda sobre os rumos da humanidade.
Queria contar uma história sobre o bem, o mal, e o poder da amizade.
Peter Jackson transformou aquele conto num mundo crível, que abriu as portas não só para voltarmos à fantasia, mas para uma transformação na mídia e na cultura pop como vimos pouquíssimas vezes antes.
Uniu suas habilidades indie com o que menos havia de indie possível, e entregou não só ação, humor e horror, mas elfos, hobbits, magos e ents terrivelmente humanos.
Reprodução - via IMDB
Ele foi muito longe para nos trazer uma casa nova, um lugar confortável que podemos visitar sempre que quisermos.
Lá e de volta outra vez.