6 livros de poetas que nos reviram do avesso: o eu-lírico pulsante
Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Mario Quintana, Ferreira Gullar, Gregório de Matos, Paulo Leminski, Olavo Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias… reparem em quantos nomes de poetas foram citados. Todos mundialmente conhecidos, estudados no colégio e aplaudidos pelos críticos literários.
Ao que tudo indica, o tom de voz que cumpre com o exercício de representação dos sujeitos e das terras brasileiras é unicamente masculino. E apesar dos livros que destaco não serem, em sua completude, de origem brasileira, enfrentam a universalidade poética masculina com uma maestria que nos fascina.
A representação em o livro das semelhanças
Também autora de outras obras como Risque esta palavra e Da arte das armadilhas, a mineira Ana Martins Marques ressignifica o cotidiano enquanto brinca com palavras cujas sintaxes e fonéticas, se similares, nunca se repetem na construção do mesmo sentido. O livro, como um todo, se dedica a um dilema extremamente lançado pela teoria literária: a divergência de valores entre realidade e ficção.
No entremeio de semelhanças e distinções, os poemas atravessam a lógica discursiva da representação do real na literatura, utilizando do recurso da metaficção e da metapoesia. Ao se debruçar sobre o ato poético, simultaneamente na abordagem de outros assuntos, Ana Martins Marques estabelece um questionamento sobre a própria estrutura e função do objeto livro. A primeira seção da obra se direciona, em uma espécie de fragmento, sobre as várias partes de um livro, a “capa”, o “primeiro poema”, o “nome do autor”, “contracapa” e assim por diante.
“O primeiro verso é o mais difícil
o leitor está à porta
não sabe ainda se entra
ou só espia
se se lança ao livro
ou finalmente encara
o dia
o dia: contas a pagar
correspondência atrasada
congestionamentos
xícaras sujas
aqui ao menos não encontrarás,
leitor,
xícaras sujas”
Com um cuidado enorme na escrita poética, em especial do artifício da ironia, O livro das semelhanças é muito mais do que um descontentamento com a monotonia do real, mas sim um encontro com as palavras que redimensiona o cotidiano. É por meio da experiência que os rearranjos da linguagem se mostram como imensos na relação do universo com o indivíduo.
O espantar-se com o mundo em Jóquei
A leitura ganha um contorno tão particular que suscita uma imagem pronta que tem gosto: estamos deitadas no chão bebendo vinho com uma amiga íntima enquanto imaginamos e refletimos sobre a vida. Isto acontece porque Matilde Campilho nos convida para um passeio sutil e permeado de detalhes pelas ambiências mais elementares; a cada instante, somos presenteados com uma avalanche de surpresas e uma transição quase delirante entre o belo e o trágico. A utilização constante do “nós” no texto não é gratuita: Jóquei é sobre o reencantamento com o mundo a partir do sujeito.
“Olhei com mais atenção o desenho da estrutura e percebi: a raça humana é toda brilho”
Em um choque do encanto que beira a estranheza, os poemas discorrem sobre o experimentar de um novo espaço fundamentado em um olhar distinto — uma ótica praticamente de estrangeiro. É nesse percurso do desconhecido que está o magnetismo no trabalho poético de Matilde Campilho, em razão da novidade do processo de entendimento do mundo: tudo é “brilho” porque trata-se de uma nova visualidade sobre tudo.
É a mais completa inversão do “admirável mundo novo”; o que se delineia é um sujeito transformado que se encanta por aquilo que vive. O processo deriva de uma sensação inquieta, avivando a economia do deslocamento do sujeito. O efeito é esse apreciar, investigar e, sobretudo, enxergar o insignificante e maravilhoso que nos envolve.
Entre o riso e a redenção em Canções de atormentar
Oito anos após o lançamento do ilustre Um útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas não deixa de lado a atenção sobre a figura da mulher no seu novo livro, suscitando discussões sobre um tema importantíssimo: a consciência sobre o corpo. Os poemas traçam uma perspectiva que nega a adequação não só do ideal parâmetro de feminilidade, a exemplo do “eu sou a garota mais doce ao sul do equador”, que indaga a noção do que é visto como aspectos masculinos ou femininos.
“eu sou a garota fugaz da minha rua em flor
o garoto que rouba as flores da casa
eu sou sobretudo eu sou
eu mesma
eu sou a garota mais valente ao seu dispor
o garoto mais engraçado que conheço
eu sou eu sinto que sou
eu mesmo”
Outros poemas caminham na dinâmica conflituosa entre memória e imaginação — contudo, Angélica transforma esse conflito em um humor incisivo que reverbera até em uma abordagem do tempo atual. O que importa não são respostas, o que está em urgência é mais ou menos o método socrático: o estímulo a questionar-se. A autora, em uma denúncia autêntica e afiada, observa a problemática do desejo quando se relaciona ao consumo. E nessa lógica de denúncia, ela se estende aos problemas ambientais implicados pelas hidrelétricas na Amazônia.
Entretanto, por mais que soe como queixas, a forma poética sublinhada pelo ritmo e o próprio humor mencionado faz com que Canções de atormentar seja mais uma fala sobre o desassossego com a realidade e, de certo modo, uma maneira de demonstrar que não estamos à deriva em incômodos pensamentos sobre o mundo que nos circunscreve. A poesia de Angélica nos autoriza ao riso, de tudo e de nós, em um acalento ou redenção das tragédias exigidas.
Apenas e unicamente ela: Hilda Hilst
O intenso exercício literário de Hilda desenrolou-se em obras de ficção e em peças de teatro, só que foi na poesia que ela começou e terminou sua carreira. Até então identificada como uma poética marginal e labiríntica, ocasionando em um certo receio na leitura, a partir do início dos anos 2000 que a poesia de Hilda ganhou prestígio e conquistou várias pessoas.
Transgressora. Por mais que substantivos como este possam traduzir o que era Hilda Hilst, ela ainda ultrapassaria qualquer formalização ou definição sobre o seu modo sem igual de existir. A sua poesia atua intrinsecamente ao seu jeito descontínuo de logicidade — versos de amor que se ascendem à figura de Deus, mas também palavras que afundam no universo do carnal. Um jogo constante com a vida enquanto dança com a morte.
“E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.”
A poética hilstiana não se concentra inteiramente em um tema universal, alcançando uma atmosfera multifacetada. As três temáticas mais recorrentes estão combinadas e amalgamadas nos eixos do amor, da morte e do divino a partir de interpretações que se revisitam, adquirindo diversas nuances e novas formas de perspectivas. Entretanto, a significação do tempo atravessa toda a produção de sentido realizada pela autora; investindo a superfície temporal sobre o seu trabalho poético, Hilda promove um estatuto de reflexão e profundidade em cada linha escrita.
O obscuro enternecedor em Os trabalhos e as noites
Com a apresentação de Ana Martins Marques, o livro da argentina Alejandra Pizarnik, poeta morta prematuramente em 1972, transpassa uma percepção de extrema brevidade. No texto, Ana destaca a atmosfera preenchida pelo noturno, delineando uma espécie de sombra àquilo que se constrói por meio do afeto. O silêncio, nesse caso, é o agente da poesia de Pizarnik; o vocabulário se restringe a um inventário pequeno de imagens e palavras, mas que se equilibram no espaço soturno e ausente que perpassa a sua escrita.
A articulação de elementos que se fundamentam como símbolos se define como quase um tormento. Noite, coração, cinza, pedra, pássaro, vento, chuva, flor e outros mostram o quanto Pizarnik se dedica a uma perseguição cansativa que se dilui ao próprio objeto buscado. Escapam-se a marca da perda e sua experiência e a não-presença, diferindo da solitude imanente da ausência, se colocam nos pensamentos.
“Dama pequeníssima
moradora no coração de um pássaro
sai à alba a pronunciar uma sílaba
NÃO”
No poema acima, nomeado como Relógio, o enorme NÃO compõe esse esgotamento da demora, de algo que a ausência já cristalizou. A identificação límpida de onde advém a ferida, mediante aos signos do silêncio e da morte, marcam a poesia de Pizarnik. Saindo da investigação do eixo ficcional, a própria desistência da vida que emerge em ação não deixa de ser evidenciada em seu trabalho poético — nada sabemos sobre ela, apenas suas dores e angústias em uma narrativa do sensorial.
A nudez em A teus pés
“(…) Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa — com arbítrio silencioso e origem que não confesso — como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios,
e passa o ponto e as luvas”
No poema acima, designado Sete Chaves, a intimidade se desprende de modo que nada se faz como resistência. A própria potência está no transbordamento da subjetividade, a qual a poeta Ana Cristina Cesar mergulha fundo. Em todos os seus versos, ela investe na desconstrução e reconstrução do sujeito — o despir-se em frente ao “outro” plural e desconhecido.
Em uma sondagem da realidade, que também emerge a instância do ficcional, há o alargamento do ato investigativo quando se observa o “eu em si” se estendendo até a alteridade: o encontro e, sobretudo, reconhecimento do “outro.” Essa tensão é colocada a todo instante em A teus pés, de modo que faz jus ao título — é um “outro” que se arrasta indiscutivelmente.
A partir de um “eu-lírico” feminino que, consciente de seus sentimentos e dos alheios, se coloca aos pés em uma ordem não mais hierarquizante e sim na constituição de fato da alteridade. Por meio da liberdade de “ser”, o “eu em si” em sua totalidade, Ana Cristina Cesar demonstra que o símbolo da feminilidade está exatamente na representação desprendida, aberta e contínua.
Em uma atmosfera rarefeita onde a escrita poética era considerada uma atividade masculina, essas mulheres e muitas outras como Cecília Meireles, Adélia Prado, Cora Coralina, nos revelam a particularidade sensível da poesia sob o ângulo feminino.
Revestidas em um noz que jamais se reconheceu a excepcional qualidade dos poemas de mulheres, frequentemente comparadas com as produções masculinas e também pelo domínio do gênero romanesco quando se pensa na escrita feminina, o agora se torna ocupado por uma polissemia de poetas que singularizam o modo de se fazer poesia.
Imagem: Capas dos livros
Este artigo foi escrito por Laís Maciel e publicado originalmente em Prensa.li.