700 anos da morte de Dante: notas sobre um escritor político
Antonio Gramsci (1891-1937) num escrito no jornal La città futura, em 1917, diz que a indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Reconhece também que a indiferença opera passivamente na história, sendo a matéria bruta que destrói a inteligência. Portanto, viver requer dizer ser partidário e, então, declara ódio aos indiferentes.
Proponho seguir em duas seções conectadas politicamente: a vida política de Dante e sua capacidade dupla de refletir e de agir, e a recepção do Canto X do Inferno por autores italianos, mediadas pela ideia de partidário no Canto III também desta seção.
Dante Alighieri (-1321), autor da Divina Comédia e tantas outras obras fundamentais para o pensamento ocidental, o pai da língua italiana, é reconhecidamente um literato notável. Além disso, é também um homem político de sua época com os valores morais e religiosos deste período, mas, ainda assim, possuidor de um olhar crítico.
A participação de Dante na vida política de Florença é marcada em muitos documentos, biografias e estudos entre os anos de 1295 a 1301, mas certamente se iniciou antes, como pode ser observado em passagens de Vita nuova (1294).
Tudo o que se pode reconstruir da formação intelectual e da atividade poética de Dante, como escreveu Giuliano Milani: “A imagem de um Dante que, já antes dos trinta anos, não é de forma alguma estranho à reflexão política. Pelo contrário, como poeta e intelectual, se mostra bem consciente da densa estrutura das ideias relativas à sociedade citadina, aos seus conflitos e ao seu governo, e é no interior desse debate complexo e estratificado que busca seu caminho entre as posições existentes”.
Mais adiante na cronologia política de Florença, os Guelfos eram divididos entre os Brancos (Bianchi) e os Negros (Neri), liderados por duas famílias da região: os Cerchi e os Donati. É em consequência dessa divisão, tão violenta quanto àquela entre os Guelfos e os Ghibelinos, que a vida política de Dante é direcionada ao exílio.
Com o golpe de Estado colocado em prática pelos Neri, os processos de 1302 representam uma virada na vida política florentina, estava claro que os processos eram estritamente políticos. Nos últimos anos no governo, Dante era, como escreve Villani: “um dos maiores governadores na nossa cidade”. Entre os anos de 1304 e 1321, durante seu exílio, Dante escreveu a Divina Comédia (1304-1321), sua obra magna carregada de alegorias e críticas políticas e sociais.
Para mostrar como Dante era partidário através da literatura, chegamos ao Canto III do Inferno, em que o poeta florentino situa os covardes, inertes, de toda forma, os indiferentes no ante-inferno. Virgílio diz que aquelas figuras são anjos mesquinhos junto a quem jamais mereceu viver, agora, os céus os recusam, o inferno não os recebe. As almas assim destinadas são castigadas por ferroadas de vespas e tavões, ao mesmo tempo em que seus rostos são banhados por lágrimas e sangue que lhes caem aos pés, esses que, por sua vez, estão rodeados por vermes.
Virgílio então diz “mais deles não falemos: olha e passa”. Tal atitude do poeta florentino em colocá-los à parte de alguma atenção, revela seu posicionamento em relação aos indiferentes. Além disso, o posicionamento de Virgílio reforça a indiferença direcionada a tais indiferentes.
Passando à recepção do Canto X do Inferno, este que já levantou muito debate entre os intelectuais políticos, teóricos literários ou comentadores de Dante, ainda hoje suscita disputas de discursos.
Gramsci, por exemplo, na conclusão de uma carta de setembro de 1931, diz que a interpretação dos dramas das duas figuras históricas – Farinata e Cavalcante – e de suas diferentes dimensões de castigos, mina de modo vital a tese de Benedetto Croce sobre a poesia e a estrutura da Divina Comédia, pois sem a estrutura não haveria poesia e então também a estrutura tem um valor de poesia. Gerando a disputa interpretativa e de incorporação da obra clássica.
Já nos escritos dos Cadernos, Gramsci elabora a análise previamente proposta. Dessa vez, parte dos escritos de Vicenzo Morello, acusando de ser uma análise rasa e banal. Morello diz que o Canto X é “político por excelência”, em contraposição, Gramsci diz que não é verdade, então define que o Canto X é político como é política toda a Divina Comédia. Vale acrescentar, aqui, que Dante é político por excelência, um escritor político por excelência.
Por fim, conclui o parágrafo 83, do caderno 4, dizendo que Dante era essencialmente um intelectual, seu sectarismo e partidarismo são mais da natureza intelectual do que política em sentido imediato. E realmente, tentaram o caracterizar como um guelfo branco, porém ele recusa essa nomeação, Dante estava pela política e não pelos partidos.
Além disso, sua obra nasce dos conflitos entre os valores tradicionais: a Igreja e o Império, isto é, o espiritual e o poder temporal, respectivamente, e uma nova cultura: a burguesa, ou seja, é uma sociedade em transição. Sua prospectiva poderia ser aproximada de elogiar o passado para criticar o presente e, com isso, delinear um ideal para o futuro.
Referência bibliográfica
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Este artigo foi escrito por Maurício Brugnaro Júnior e publicado originalmente em Prensa.li.