A civilização sob suspeita
Vivem-se tempos estranhos. Esse pensamento é antigo, tradicional, até mesmo arcaico, de antanho. A literatura é cheia de personagens que a proferiram. Ao longo da história, ela foi dita milhares e milhares de vezes. Ora em situações pueris, oportunistas, ora em cenas de profunda análise factual e realista do momento. Ela coloca esta civilização sob suspeita.
É possível que a leitora ou o leitor antevejam aqui críticas ferrenhas à internet, à maneira como os usuários se comportam. Parte dessa antevisão é verdadeira, mas apenas no trecho “usuários de comportam”. Em verdade, parece ser consenso entre os pensadores atuais que a internet apenas ampliou a imbecilidade latente há milênios.
Esse ângulo de visão ganha força ao se elencar as clássicas cenas macabras que a História destaca. O livro “A assustadora história da maldade” (ed. Prestígio, 2002) é exemplo terrível, ainda que prático.
Nele, Oliver Thomson retrata a monstruosidade humana em quase 600 páginas. São textos curtos que não propõem reflexão, apenas demonstração. Usa cenas da vida de Calígula, os primeiros papas, Marquês de Sade, Gengis Khan, Machiavel, Adolf Hitler, Henrique VIII, Átila, Idi Amim, entre outros.
Músicas da civilização sob suspeita
Casos como o dos Richthofen e Henry são pontuais e, assim, não catalogam as características desta civilização. Tanto que os leitores certamente precisaram de um tempo para identificá-los na memória: o caso Suzanne Von Richthofen e caso Jairinho e Monique respectivamente.
Por outro lado, alguns outros têm capacidade identificatória. A condição da dignidade e postura humanas é descrita em canções das mais diversas, além de em obras literárias. Jorge Drexler, cantor e compositor uruguaio, lançou o álbum "12 segundos de oscuridad" em 2006. Nele, alerta que “somos até piores do que os macacos, que estão há milhões de anos na Terra e nunca ameaçaram a sobrevivência do planeta”.
Cássia Eller, na música-obra de arte Relicário, já apresentava uma questão de difícil resposta: “O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou”.
É sabido, segundo a sociologia, que os viventes de uma época não a percebem do mesmo jeito que historiadores futuros. Nesse sentido, é fato que a questão de Cássia vai demorar um bom tempo para ser respondida.
O objetivo deste ensaio é, então, tentar antecipar a resposta. Não se pretende instigar estados de depressão ou de pessimismo, mas alertar para a realidade. Mais ou menos como na canção de Chico Buarque, Meu caro amigo, no trecho “eu não pretendo provocar nem atiçar suas saudades; mas acontece que não posso me furtar a lhe contar as novidades [...] mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”.
Civilização de botequim
Os botequins têm enorme relevância na macroeconomia e especialmente na economia familiar. Em ocasiões diversas, passam por proprietários em várias gerações. Portanto, o título deste capítulo nada tem de opressivo ou humilhante. Trata-se, no contexto, apenas de metáfora.
Sérgio Porto foi grande cronista brasileiro que preferia Stanislau Ponte Preta ao próprio nome. Era mestre em catalogar diálogos botiquinescos clássicos. O fato é que se discute de tudo em botequins. Tradicional, aberta e inconsequentemente, fala-se sobre desde o chifre do Zé da Esquina às questões metafísicas do Pecado Original.
Na esmagadora maioria dos casos, os discutidores não detinham qualquer conhecimento sobre os fatos. Nem sobre o chifre nem sobre o Pecado.
O problema é que as falácias, fofocas e pensamentos dos botequins de ontem ganharam peso opinativo na civilização de botequim atual. O que antes se restringia a pequeno círculo de ouvintes alcança ares de notícia mundial hoje.
Por outro lado, há uma questão principal e aparentemente oculta nesse tal problema. Os expressores de opinião mantêm a noção de que tudo permanece restrito a pequeno círculo de ouvintes.
Algumas cenas de uma civilização sob suspeita
Não se pode alegar que a condição humana de hoje é exclusiva da civilização atual. A monstruosidade comportamental é inerente ao próprio fator humano em si, como mostra o livro acima de Thomson. O lado preocupante é justamente o poder de disseminação, de noticiamento a respeito.
Esse alastramento de informações pode desencadear efeito inverso: em vez de informar para análise e combate, é possível que instigue mais “pensadores” desse nível se manifestar.
Búfalas e outros gados
No exato momento em que este ensaio está sendo escrito, o programa dominical Fantástico apresenta matéria representante deste conceito. Centenas de cabeças de gado à míngua e outras já sem vida como produto de mercenarismo de pirâmides financeiras. O caso ocorreu na cidade de Cunha/SP.
As imagens são psicologicamente desgraçantes. São tão desprezíveis quanto o caso semelhante das búfalas abandonadas pelo proprietário em fazenda também de S. Paulo, em Brotas.
Nazismo latente
As duas personagens Monark e Adrille são exemplo claro de celebridades de botequim. Discutiram o tema nazismo sob a mesma pecha do tema chifre do Zé da Esquina. Não tinham - e aparentemente ainda não têm - conhecimento mínimo no nível Pecado Original para expor opinião.
Ambos foram desligados de suas funções: o primeiro, afastado, posto que é sócio do canal; o segundo, demitido. Contudo, antes disso, uma infinidade de efeitos já tinha se alastrado mundo afora. Em especial no seio da comunidade judaica.
Morá, pseudônimo de Priscila Franco, é judia que mantém o canal no IT “Pergunta pra Morá”. Ela concedeu entrevista ao psicólogo mineiro Daniel Gontijo logo após o episódio das duas “celebridades-destrutivas”. Lembrou que a comunidade judaica é pequena no Brasil - menos de 0,01% segundo a própria Morá e o site Igarape.
Núcleos nazistas
Por isso, são auto e interprotetores, pois “a gente conhece todo mundo e todo mundo conhece a gente”, diz ela. Completa mostrando que, em seu site, recebe ataques antissemitas toda semana. A diferença entre ataques racistas contra negros e LGBTs é que o antijudaísmo é muito mais violento.
Ao mesmo tempo, Morá apresenta um lado da questão profundamente apropriada e prática que deveria servir de obstáculos para publicidade nazista. “Não nasceu ainda na comunidade judaica [uma pessoa] que ao menos não tenha sido carregada no colo por um sobrevivente do holocausto.”
A antropóloga Adriana Dias, mencionada na entrevista de Morá, é estudiosa do fenômeno nazista no Brasil. Seus levantamentos indicam que existem hoje 530 núcleos abertamente autodeclarados nazistas.
Esse número representa aumento de quase 60% desde o último levantamento. E isso apenas a partir de 2018. Especialistas em socioanálise têm alertado constantemente que a postura das autoridades políticas brasileiras é fomento claro para situações semelhantes.
Medicina sob suspeita
A ideia de que medicina salva é destratada ocasionalmente por um ou outro evento. Entretanto, casos que mostram o pior da condição filosófica humana maltratam o mundo inteiro.
É a impressão que se tem ao se deparar com notícias do tipo da estagiária de medicina do estado de Alagoas. Mostrou e redes sociais a face macabra da profissão ao expor sua indignação por uma paciente ter chegado com sinais de infarto e atrapalhado seu “sagrado descanso em horário de expediente”.
Em suas postagens, descreve o ocorrido e as encerra com "Atualizações: a mulher morreu e eu não dormi". A imagem do prontuário e selfie com o famigerado sinal de "joinha" coroou seu desprezo por seres humanos. Perdeu o estágio, o fim de curso e eventual resquício de dignidade.
A baleia azul
Não se sabe exatamente o que leva um ser humano adulto a criar um jogo macabro. O tal Baleia Azul levou dezenas de crianças ao suicídio e centenas de adolescentes a médicos e psicólogos ao redor do mundo.
Outros jogos semelhantes anteriores e posteriores já tinham esse objetivo.
A vida por um clube
É comum deparar-se com notícias sobre mortes entre torcedores de clubes de futebol. Normalmente, os motivos são os mais banais: olhares enviesados, palavrões mal direcionados, chacotas sobre derrota.
Notícias desse tipo intuem o ser humano a se desesperançar do futuro. Vidas perdidas em meio à multidão por 90 minutos de esporte.
Oportunismo macabro
A imagem de um pai é sempre menos forte que a de uma mãe. Ainda assim, a ausência paterna é sempre alvo de dissonância psicológica para muitos filhos. Nesse cenário, é normal associar essa imagem à amizade, ao companheirismo, à responsabilidade.
Por isso, saber que um pai foi capaz de roubar um filho é sempre aterrador. Ainda mais quando o valor é produto de “vaquinha social" para salvar a vida do filho diagnosticado com Atrofia Muscular Espinhal.
Grávida de Taubaté
Algumas pessoas são capazes de qualquer atitude para chamar a atenção. Os chamados influenciadores digitais que o digam. Muitos perderam a vida ao tentar produzir selfies chamativas, como em despenhadeiros. Ou cimentar a própria cabeça dentro de um micro-ondas.
Contudo, a conhecidíssima Grávida de Taubaté parece ter batido todos os recordes. Durante semanas, a pedagoga buscou ajuda financeira para sua falsa gravidez de quadrigêmeos, mostrando o entre absurdamente dilatado. E apenas o ventre, pois o restante do corpo em nada indicava gravidez.
Religião sob suspeita
Os casos de violência religiosa, em todos os âmbitos, são seculares e até milenares. Desde as oferendas de virgens na ancestralidade até à expropriação de bens de fiéis atual, a Religião como um todo tem sido elemento de surpresa para muitos observadores da dignidade humana.
A capacidade de comunicação de hoje, porém, tem tornado esses momentos verdadeiros exemplos da condição rasteira da humanidade de hoje.
A Segunda Idade das Trevas
Destaca-se neste ensaio que a civilização atual tem apresentado avanços inomináveis. Medicina, saúde, filosofia, conhecimento geral e especialmente tecnologia são áreas cuja evolução das últimas décadas é maior que a acumulada em séculos passados.
Entretanto, essa evolução não prediz que a condição filosófica e psicológica tenha avançado na mesma proporção.
Como mencionado, ignoram-se aqui os casos pontuais e apontam-se apenas aqueles que deveriam estar esquecidos na percepção humana. Mas não estão.
Ainda se está longe disso, pelo jeito. As trevas conceituais estão aí, dia a dia, compondo o núcleo das relações humanas.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.