A corrida para criação de uma moeda fiduciária digital no Brasil
Shubham Dhage via Unsplash
Em 20 de agosto de 2020, o Banco Central do Brasil anunciou a criação de um grupo de trabalho para analisar as possíveis repercussões de eventual implementação de uma moeda digital no país.
As CBDC’s (Central Bank Digital Currency) ou moedas digitais fiduciárias tornaram-se nos últimos anos umas das principais frentes de resposta de governos nacionais à necessidade de desenvolvimento tecnológico dos instrumentos financeiros tradicionais.
Além de desafios econômicos históricos, como a inflação e o câmbio, o crescimento exponencial do mercado digital internacional impõe cada vez mais o desenvolvimento dos sistemas de pagamento e serviços financeiros tradicionais.
Outra ameaça justificada para sua criação é o desenvolvimento e a adoção de criptomoedas e dos mecanismos das finanças descentralizadas (DeFi). Os sistemas de pagamentos peer to peer em ambientes descentralizados, sem necessidade de uma autoridade central ou de identificação de usuários, quase sempre são taxadas como um fator de risco para práticas ilícitas ou desvio de fundos.
Também o desenvolvimento de mecanismos financeiros por empresas privadas, como as big techs, sendo notório o anúncio da Libra pelo Facebook, rede social utilizada por cerca de 3 bilhões de pessoas e o crescimento das stablecoins, vêm sendo apontados como fatores de risco à soberania econômica.
Somado a isso, a pandemia mundial da COVID-19 escancarou as dificuldades dos modelos então vigentes em desenvolverem alternativas econômicas e financeiras em um ambiente de isolamento social.
A nível de Estado, restaram evidentes as dificuldades das autoridades centrais em alcançarem objetivos de distribuição econômica e assistência social. No Brasil em particular, o pagamento do auxílio emergencial encontrou uma enorme dificuldade associada ao “simples” fato de que milhares de beneficiários não possuíam acesso bancário.
A evolução do tema ao redor do mundo
As moedas digitais fiduciárias se tornaram assim uma alternativa em tendência e pretendem não a criação de uma criptomoeda, mas, apenas a “transferência” da moeda então existente para o formato digital.
Por trás dos projetos, o fato comum da busca por soberania monetária, controle de suprimento, regulamentação e busca de instrumentos de desenvolvimento na economia digital.
O People 's Bank of China, autoridade central chinesa, foi um dos principais desenvolvedores do modelo lançando em 2020 o yuan digital ou e-yuan através de um sistema de pagamento eletrônico (DCEP – Digital Currency Eletronic Payment).
O sistema atua em duas camadas, distribuição da moeda a bancos comerciais para distribuição ao mercado e usuários, através de um sistema de pagamentos que promete, além de proteção de dados, acesso inclusive a populações sem acesso à banco ou internet (através da tecnologia NFC) e será inclusive utilizado por empresas estrangeiras nos próximos Jogos Olímpicos de Inverno.
Outros exemplos podem ser referenciados como o caso de criação do bolívar digital na Venezuela, a e-krona na Suécia, o Projeto Helvetia na Suíça com seus sistemas de prova e distribuição, além de projetos em desenvolvimento na União Europeia, Coreia do Sul, Japão e Reino Unido.
No caso dos Estados Unidos, o projeto também é desenvolvido, mas, por trás de bastante sigilo e acato público. O denominado Projeto Hamilton, desenvolvido pela Boston Fed, avança nos estudos de uma hipotética criação de uma moeda digital.
Em Conferência na Regent's University London, Jim Cunha, sênior vice presidente, apresentou os objetivos de privacidade, interoperabilidade, modelo de distribuição, ciberataques, segurança, fraude e provas de futuro que a moeda deve possuir.
O CBDC do Banco Central do Brasil
No Brasil, na Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado Federal, o assessor econômico do Banco Central, Fábio Araújo, estimou que testes iniciais da tecnologia devem ser iniciados em 2022, podendo haver a implementação no país até 2024.
O projeto é associado à agenda de desenvolvimento tecnológico do Sistema Financeiro Nacional (Agenda BC#), e acompanha a esteira de digitalização de uma economia cada vez mais virtual que, inclusive, recentemente foi integrada à tecnologia PIX.
Em comunicado de maio de 2021, foram apresentados os principais aspectos do projeto e quais os motivos de seu desenvolvimento.
De modo geral, propõe-se a avaliação de sua capacidade de resposta aos contratos inteligentes, internet das coisas, pagamentos em varejo, operações offline, interoperabilidade, segurança e principalmente soberania monetária. Segundo o BCB, a adoção poderia ampliar a inclusão financeira, diminuir os custos de transação e ampliar o alcance das transações transfronteiriças.
Os desafios à porta
No entanto, até o presente momento não foram apresentadas conclusões sólidas sobre os benefícios e o verdadeiro potencial disruptivo da adoção do REAL Digital.
Não há um paradigma claro acerca do alcance do controle estatal sobre sua emissão, quais seriam as agências reguladoras de segurança, quais os limites de controle das informações financeiras em um ambiente aparentemente centralizado.
Aos alegados princípios de combate ao crime organizado, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, não houve definição sobre a garantia de direitos econômicos, instrumentos de proteção e segurança dos dados, nem clareza sobre eventuais limites das políticas econômicas adotadas ou de como os direitos sobre os ativos estariam resguardados.
Por trás dos projetos, outra lacuna que se abre é sobre a adoção de tecnologia, tanto acerca da integridade de eventuais fornecedores do governo, como de sua relação com outras tecnologias disruptivas.
Em seu anúncio o Banco Central não cuida de apontar qual o modelo de distribuição, dando indícios de centralização tecnológica e econômica, apontando os criptoativos como meros instrumentos de especulação financeira, sem apresentar o suporte de políticas econômicas associadas ao projeto.
Segundo analistas, a simples transferência da moeda física para o ambiente digital por si só não torna possível inferir que haverá alteração das políticas monetárias, potencialização do sistema financeiro nacional, alcance e distribuição das demandas socioeconômicas.
Uma alteração de ambiente para um universo ainda mais centralizado, pode apenas catalisar os problemas já comuns de desvalorização e competitividade de mercado.
Por fim, o design do modelo a ser adotado requer uma grande maturidade de orientação política e econômica, já que, normalmente a forma de operação dos CBDC’s costumam ocorrer sobre dois paradigmas:
o de primeira camada no qual o governo faz a distribuição direta dos ativos aos usuários, o que requer ajustes sobre a forma de rentabilização das moedas, tamanho da estrutura para suportar o volume e os impactos sobre a competitividade com o mercado financeiro
operar em uma segunda camada, onde o governo atua como emissor, mas a distribuição dos ativos ocorre através de intermediários (instituições financeiras), modelo de menor poder disruptivo.
De toda forma, em breve, com novidades sobre o desenvolvimento do projeto pelo Banco Central do Brasil será preciso identificar qual o caminho traçado pela autoridade nacional, se pelo desenvolvimento de um instrumento de inovação tecnológica, com reflexos de política econômica e financeira, ou se o projeto é apenas uma resposta tardia para um economia dinâmica demais para seus preceitos de manutenção do status quo, porém, em um ambiente digital.
Este artigo foi escrito por Verber Alves de Souza e publicado originalmente em Prensa.li.