A demanda por profissionais de humanidades na indústria Web3
Operários, de Tarsila do Amaral
Todo mundo formado em humanidades já lidou com o questionamento sobre o que iria fazer da vida para gerar renda.
Por mais “espertinha” que a pergunta seja, não deixa de ser relevante. Sabemos que não é comum encontrar pessoas de humanidades trabalhando, dentro de sua área de atuação, fora da sala de aula.
Entre todas explicações para esta questão, três se destacam.
A primeira diz sobre a ausência de um mercado do conhecimento no Brasil. Temos um amplo e crescente mercado de dados, de captura e manejo de dados, mas os pressupostos epistêmicos que utilizamos para lidar com tais dados ainda é importado.
A tendência ESG poderia ter surgido no Brasil a partir das demandas tradicionais relacionadas à justiça social, preocupação ambiental e governança. Temos movimentos sociais fortes em todos estes campos e diversidade suficiente para dar lugar a uma cultura corporativa antifrágil.
Porém para que nossas lideranças de mercado passassem a dar atenção a estes temas foi necessário que estrangeiros definissem a importância deles.
Daí a enxurrada de piadas que surgem nas redes sociais sobre empresas brasileiras assumindo preocupações com pautas feministas, antirracistas e ambientais “do nada”.
Será que não seria mais orgânico e sólido se a transição para esses temas fosse realizada mediante diálogo entre os representantes nacionais da indústria, movimentos sociais e academia, e não de uma imposição estrangeira?
Esperamos que a Europa e os EUA nos eduquem em matérias como ética, regulamentação, análise dos impactos da tecnologia financeira, etc. Diferente da maioria dos problemas no Brasil que são resultado de uma relação espúria entre Estado e Mercado, este problema é uma questão de submissão das lideranças brasileiras do mercado às premissas filosóficas estrangeiras.
A ausência deste mercado aqui gera duas consequências diretas que são:
Os altos custos (financeiros, humanos e institucionais) da adaptação às demandas culturais e filosóficas de outros países.
A segunda explicação diz sobre a responsabilidade estatal e docente sobre o tema. Todo mundo que já teve algum contato com o ensino e a pesquisa de humanidades no Brasil sabe que um sentimento anti-mercado domina este ambiente.
Esta dominância não é totalmente injustificada, porém é assunto pra outra discussão.
Não estou questionando o direito da academia de produzir seus pressupostos ou de constituir uma cultura educacional própria. Estou apenas destacando como essa cultura, no caso das humanidades, contribui para gerar um exército de reserva para a atividade docente.
Este clima anti-mercado gera duas consequências diretas:
A criação de um exército de reserva que corrói o preço (não o valor) da mão de obra docente.
A inaptidão do domínio de técnicas básicas de mercado para monetizar suas habilidades.
Esta última gera uma má disposição dos profissionais de humanidades com gente do entretenimento que ganha muito dinheiro e atenção expondo opiniões falaciosas e sensacionalistas.
Porém essa má disposição nunca é vertida em potência, mas sempre em ressentimento, quando os influenciadores cometem erros que qualquer calouro de ciências sociais poderia prever. Vide o caso Monark e o caso Mamãe Falei.
A terceira tentativa de explicar a ausência de espaços fora da sala de aula onde profissionais de humanidades podem exercer seu ofício diz sobre uma forma de mentalidade dominante nesse campo.
Essa mentalidade se origina de uma influência marxista e vincula a tecnologia financeira ao capitalismo. Como se países socialistas não precisassem de contadores. Como se a China não estivesse na liderança global em termos de digitalização financeira.
É bom explicitar que não estou acusando o marxismo enquanto teoria de rejeitar a tecnologia financeira, estou apontando para uma relação criada e mantida aqui no Brasil. Então, marxistas, podem se acalmar.
Um fato que exemplifica essa minha afirmação é a falta de abordagens intelectuais, de humanidades, sobre as duas formas de tecnologia financeira mais sofisticadas e ousadas que existem hoje: Blockchain e Open Finance.
No Brasil hoje temos Edmilson Paraná fazendo um bom trabalho crítico à tecnologia blockchain apontando os caminhos pelos quais ela pode se tornar um reforço do regime de desigualdade que hoje impera no mundo.
No entanto, fora o trabalho internacionalmente reconhecido de Paraná, não existem muitos exemplos de abordagens parecidas em termos de compreensão. O que existe são muitas caricaturas relacionando blockchain ao crime organizado ou à atuação de grupos extremistas.
Quando o tema é Open Finance, não há caricatura porque nem mesmo há discussão por parte de nichos intelectuais das humanidades.
(Seríamos desonestos se não reconhecêssemos que existe um debate interessante sobre o empreendedorismo de plataforma nas humanidades.)
A falta de compreensão da tecnologia financeira e dos seus avanços faz com que os profissionais de humanidades fiquem tradicionalmente de fora de um mercado que paga bem e tem alta demanda de mão de obra de humanidades: a indústria web3.
Essa falta de compreensão não é natural. O avanço da tecnologia financeira cria, reforma e às vezes inviabiliza alguns tipos de sociabilidade.
Avaliar esse impacto não é responsabilidade dos desenvolvedores, analistas ou engenheiros de software, mas dos profissionais de humanidades. Isso porque são estes últimos quem detém, por ofício, as ferramentas cognitivas para essa tarefa.
Outro exemplo da demanda da mão de obra de humanidades diz respeito aos modelos pedagógicos e às ferramentas didáticas no contexto da web3.
Ao mesmo tempo que são tecnologias acessíveis do ponto de vista da capacidade de processamento de dados necessária para utilizá-las, o conhecimento necessário é incrivelmente especializado e muitas vezes a incompreensão gera um afastamento do público em relação a esta tecnologia.
Aqui entra a demanda por profissionais que dominam ferramentas de construção, avaliação e análise de processos pedagógicos. Profissionais que o Brasil produz em excesso todos os anos.
O desencontro entre demanda de mão de obra e a oferta disponível pode ser racionalizada através daquelas três explicações que oferecemos a princípio. No entanto, racionalizar não é explicar, e explicar é apenas parte da solução.
É comum que alguns cursos superiores das universidades públicas tenham, obrigatoriamente, um conteúdo de filosofia em sua grade, isso é ótimo porque dá ao aluno a oportunidade de uma percepção crítica sobre sua área.
O que falta agora é que, nos cursos de humanidades, o conteúdo sobre tecnologia financeira seja obrigatório.
O preço de uma formação em humanidades sem conhecimento de tecnologia financeira e empreendedorismo é a formação de um exército de reserva para a sala de aula.
Quem paga esse preço são nossos professores que ano a ano observam o custo da sua mão de obra ser reduzido por conta de um exército de reserva cada vez maior.
O Brasil produz um enorme contingente de mão de obra especializada em humanidades, já passou da hora deste contingente ser aproveitado, também, fora da sala de aula.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.