A dor das águas de Petrópolis
Os assuntos que abordo normalmente aqui na Prensa são leves, às vezes com uma pegada bem humorada, às vezes mais reflexiva. Hoje, infelizmente, vou pesar um pouco a mão.
11 de Janeiro de 2011. Temporada de chuvas. Na redação do jornal onde trabalhava, assistimos estarrecidos, por alguns televisores, as imagens que chegavam de Petrópolis e arredores, região serrana do Rio de Janeiro.
Poucas horas de chuva forte, localizada sobre encostas, barrancos, e principalmente, um sem número de habitações irregulares, transformaram aquele dia de verão em uma tragédia, que embalou as cidades em montes de lama, destroços e dor.
Aventura dolorosa
Fui chamada pelo diretor de redação, que sem me dar chance de pensar, me mandou para o aeroporto. Mal tive tempo para pegar uma muda de roupa em casa. Lembro de fechar os olhos no Hercílio Luz e abrir já no Santos Dumont.
A chuva continuava, deslizamentos eram constantes e a maioria dos taxistas não queria se atrever pela sinuosa BR-040, que liga a capital à Petrópolis. Um me levou até Duque de Caxias, e eu que me virasse para subir a serra.
Consegui carona na garupa de uma moto até a Cidade Imperial, com uma fotógrafa freelancer que acabou virando amiga.
Adentrando a região serrana, começamos a ver a extensão do desastre. A agitação dos bombeiros, polícia, voluntários, e principalmente, centenas de pessoas desnorteadas em um cenário catastrófico.
Esta amiga, que esteve fotografando em Bagdá após a derrocada de Saddam Hussein, confessou ter visto nos olhos do povo, dos que foram apenas vítimas de uma devastação sem sentido, uma expressão parecida.
Atingindo limites
Fiquei por alguns dias lá, acompanhando e me virando como podia. Certas coisas que vi e ouvi estão impressas na minha alma. Tentei ao máximo não me envolver para reportar o momento, como quem acompanha um filme. Isso é técnica, e serve para que o drama humano não nos influencie e possamos levar a informação correta.
Mas tem hora que não dá. Quando a gente não consegue mais dissociar que são pessoas, não números. E aí, é necessário parar e nos organizar para trabalhar.
Várias vezes desabei, no final do dia, quando estava sozinha tentando dormir. Eu já não era novata, mas há coisas que a vida ou a profissão nunca nos prepara para encarar.
Tragédia anunciada
E agora, onze anos depois. Tudo se repete. No momento em que escrevo, já passamos de uma centena de mortes, e parece que a contagem não dará sinais de parar tão cedo.
Esse trágico deja vù poderia ser evitado? A parte da chuva, não. São chuvas de verão, se sabe que elas virão, com maior ou menor intensidade, na mesma época. O desequilíbrio climático obviamente colabora para volumes de água cada vez mais imprevisíveis.
Mas e as habitações irregulares? Prefeituras e governo, em vez de preparar áreas novas e transferir a população que se sabe estar em áreas de risco, deram preferência em “regularizar” a situação, como foi muito bem analisado pelo colega Luiz Megale, da BandNews FM, numa destas manhãs.
Não se pode alegar inocência: em uma reportagem, a CNN Brasil mostrou estudos de 2017 que afirmam claramente: cedo ou tarde a tragédia se repetiria. E os administradores tinham ciência disso.
É mais interessante para os governantes asfaltar, colocar iluminação pública e o mínimo de saneamento básico nessas áreas, para depois poder cobrar o IPTU, do que pensar nas vidas que ali estão. Poste dá voto. Transferência de pessoas em risco é caro, incômodo e custa a simpatia de parte do eleitorado.
Descaso.
Deu no que deu. De novo. E de novo, e de novo.
A dor daquele povo em 2011 jamais sairá da minha mente, nem do meu coração. Chorei junto naquela época. Chorei de novo agora.
Quando a vida vai valer alguma coisa pra quem tem o poder?
Boa sorte, Petrópolis.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.