A escrita de Aline Bei como refúgio dos abandonados
Imagem: escritora Aline Bei, autora de 'O peso do pássaro morto' e 'A pequena coreografia do adeus'. Foto: Renato Parada
Os personagens de Aline Bei são tão marcantes para a memória quanto são pouco transparentes para o leitor. Lembro de seguir com atenção a vida da protagonista de O peso do pássaro morto (Nós, 2017) sem qualquer certeza sobre quem de fato era essa mulher. O que lhe sobressaía era a dor. A opacidade com a qual constrói seus personagens parece ser algo marcante da caneta de Bei.
As falas amorfas me parecem querer nos dizer algo, mas não necessariamente sobre quem são essas pessoas ficcionadas pela autora, sobre suas vidas interiores complexas, como num romance ortodoxo. Isso é ainda mais marcante n’A Pequena Coreografia do Adeus (Companhia das Letras, 2021): não é tanto a dor de Júlia, mas sua fuga.
O tema da fuga tem um quê de paradoxal, já que quando fugimos de algo, esse algo se abre em nossa busca, se apresenta com tal clarividência em nossas costas que sua face fica evidente. Talvez por isso em A Pequena seja melhor assimilável a dor sobre a qual Bei quer escrever com certa obsessão.
A frustração está no centro da história de Júlia, ela entrecruza o todo da prosa de Bei. Matizá-la me ajudou a reler em contrapelo a história de Júlia, alcançando o que de melhor retive da autora: o movimento, a dança. Se me permite - uma dança em fuga. Em recortes de vídeos, entrevistas e resenhas que li sobre Bei, encontrei-a descrevendo a dor sentida por sua personagem como abandono: “quando a pessoa é alguma coisa importante pra gente”, ela diz, “essa pessoa é como um lugar para onde se pode voltar.
Quando acontece a frustração, esse lugar não existe mais” (fala de Aline Bei no canal de Dora de Assis no Instagram). Em outro momento, Bei confessou que Júlia já nasceu em sua projeção como escritora. Em A Pequena, sua intenção era contar como a criança, adolescente e, depois, jovem-adulta, tornou-se escritora. Não há nada de biográfico, embora eu mesmo não possa acreditar que uma autora possua mais do que sua própria vida para escrever - como diz James Baldwin, autor que eu e Aline compartilhamos como referência.
A escrita, penso, supre essa frustração causada pelo abandono. A escrita que Júlia descobre no último terço do romance intenta preencher seus buracos causados por expectativas não cumpridas, afetos não correspondidos e tragédias jamais devidamente compreendidas. Júlia é alguém com dificuldades de organizar sentido em seus sentimentos. Antes de escrever, tudo gira ao seu redor fora de ordem. Nós, no entanto, não saberemos mais nada após ela se tornar escritora. Assim, a escrita é o fim do que nos foi permitido saber.
A escrita aparece para Júlia em sua vida adulta; a arte, no entanto, já era um desejo antigo. A arte cerca seu cotidiano, embora seu caminho como artista não tenha sido linear. Tentou ser bailarina - carreira curta e fracassada. Seu pai se interessa por cerâmica no fim da vida. E seu apetite pelas histórias ordinárias das pessoas já vislumbrava o que viria.
Foi um escritor que vivia na pensão para onde se mudou que incentivou Júlia a escrever. Um rapaz, com quem não consegue assumir um romance, compartilha com ela seus livros. Um senhor ex-boxeador - embora seja essa uma questão controversa na narrativa - divide com Júlia suas histórias. O próprio prédio onde mora possui um passado sensível envolvendo um feminicídio, que ao invés de lhe espantar, acende na menina o desejo de habitar aquele lugar.
Aline Bei elege a escrita como um lugar comunitário. A escrita aparece no romance como um composto de narrativas que atravessam Júlia, que interligam passado e presente, e lhe tocam em intimidade. Por que escrever? Júlia escreve por causa da dor que carrega consigo. Não para lembrar, e sim para esquecer. A escrita é pharmakon - recorro a um platonismo de boteco. A escrita serve mais ao esquecimento do que à lembrança. A dor pulsa, clama pela caneta, que sutura as feridas. A escrita não é uma ferramenta dos mortos, e sim dos vivos.
Júlia chega à escrita pela vontade de seguir vivendo independente do abandono paterno e da morte em vida da sua mãe. Sua mãe Vera - a quem Bei diz ter construído com inspiração em um transtorno narcísico de personalidade - não lhe concede espaço ou meios de lidar com rejeições e perdas que lhe afetam. Sua atenção sobressaída sobre si mesma arremessa sobre a filha um silêncio, quase uma censura, sob a qual Júlia vive o divórcio dos pais.
Essa inabilidade no sofrimento feminino é tema d’O peso do pássaro do morto. Sem lugar para suas palavras - coisa que aparece no texto em formas de frases soltas, descontextualizadas, ou mesmo barulhos inauditos na mesa de jantar -, as coisas seguem rodeando a personagem sem “cola” suficiente para serem capazes de tornarem-se uma habitação. Ou seja, para ela sentir-se em casa. Quando Júlia escreve uma pequena história, o texto toma métrica, forma, em contraste com a prosa de Bei.
Em outro cenário, meu comentário final chegaria com uma confissão; no entanto, eu, bem como Júlia, não me sinto pronto para escrever. Digo apenas que Júlia é uma personagem que desmancha as linhas semióticas que circulam nossas vidas. Muitas vezes também nos deparamos com um mundo desajeitado, desejamos esquecer coisas ou apenas organizá-las. Assim como Júlia, não sabemos lidar com os sucessivos abandonos que ocorrem em formas infinitesimais.
Um silêncio, um ghosting, respostas monossilábicas ou mesmo risos em não mais que dois caracteres podem ser capazes de enunciar um novo movimento de abandono. Júlia é tão familiar e cativante porque suas frustrações são mundanas e seu desejo de fuga é - ouso dizer - o nosso. Queremos um lar, mas não conseguimos confiar, desaprendemos a compartilhar e não poderíamos suprir isso sozinho - embora muitos de nós tentemos. Essa é a razão da escrita. É o que retenho de Aline Bei: a escrita pode ser o refúgio dos abandonados.
Este artigo foi escrito por Gabriel Gonzaga e publicado originalmente em Prensa.li.