A “fábrica do poema” na canção e literatura contemporâneas
Imagem: Adriana Calcanhoto / Revista Cobogó
Oito ruas microgeográficas foram atravessadas para que eu chegasse até aqui. Cortei avenidas desnecessárias e aparei as arestas da imensidão da linguagem a fim de definir meu próprio espaço. Isso parece algo simples, no entanto, foram muitos os mapas experimentados nessa jornada. Objetos como dicionários e livros de diferentes épocas históricas me cercavam e a escolha demorou a acontecer. Finalmente, a literatura se estabeleceu em minha autobiografia. Em meio a tantos materiais disponíveis, o estudo literário me coube de modo satisfatório. Fazer uso da palavra para dar vida ao texto acontece em situações cotidianas cheias de influências e heranças de outros sujeitos e textos. Dessa forma, seria ingenuidade acreditar que eu poderia fazer uma literatura que fosse autossuficiente.
O fazer literário não sobrevive apenas da palavra. Se assim o fosse, a literatura feita por todos nós estaria condenada ao fracasso. Particularmente em relação às biografias, há uma conversa áspera questionadora de seu lugar no mundo literário, mesmo quando se sabe que o estudo da biografia de um autor ou autora, antes ou depois da leitura e análise de seu texto, é fundamental para a compreensão do livro ou da obra. Arrisco-me a afirmar que haveria algo de "intuitivo" nesta prática, no sentido de considerar o contexto social vivido pelo escritor ou escritora e a influência desse contexto no momento de sua produção literária. O contexto social parece ser determinante na escolha dos temas e termos utilizados pelo autor e pela autora em seus livros, a fim de exprimir e tornar públicas suas ideias.
Mesmo no campo da ficção, as características dos espaços por onde as personagens circulam, bem como o repertório discursivo, parecem remeter o leitor e a leitora a um determinado momento histórico e social. Isso me deixa à vontade para defender a existência de uma literatura essencialmente vinculada ao campo social e ausente de neutralidade. Dessa forma, pensar a literatura e a poesia relacionadas ao campo social e as várias características que compõem a sociedade me parece uma discussão pertinente. Não há apenas uma concepção de literatura ou mesmo do que vem a ser poesia e essa controversa questão tem sido feita em diferentes contextos. Veja-se o trecho a seguir, retirado do livro de Lajolo (2018):
Mas ela [a literatura] mudou.
Mudou muito.
Mudou de cara, de endereço e até de família.
E tem quem não a reconheça no novo endereço, tem quem desfaça da parentela que veio de longe. Tem uma voz ali atrás, resmungando: então música popular é poesia? E fanfiction? Telenovela tem tanto valor quanto romance? E o que vem em blogs? Folheto de cordel tem a mesma importância estética que a epopéia…? São vozes rabugentas, mas paciência, que nessa conversa volta e meia vamos ter de dialogar com esses e outros resmungos semelhantes (LAJOLO, 2018, p. 12, grifos meus).
As afirmações colocadas no início deste artigo e a pergunta que destaquei no trecho acima (Lajolo, 2018) me parecem um tanto provocativas. Acrescenta-se a isto o fato de pensarmos canção e poesia juntas. Neste caso, o debate parece assumir proporções ainda mais significativas. Embora eu não escreva letra de música, penso que esse debate seja relevante, pois toda canção apresenta referência a um contexto social e a ausência de neutralidade pode ser identificada de modo mais concreto quando ouvimos e analisamos a letra da canção de modo sistemático.
Então música popular é poesia?
Penso que não seja tarefa simples incorporar a canção ao texto e fazer a mistura necessária com o poema, que é o ponto de partida para o texto orgânico resultante do trabalho de composição musical. Tal afirmação me faz crer que não se pode reduzir tudo ao plano do livro digital ou impresso. Deve haver algo que nos comova e provoque o movimento do corpo e a necessidade da escuta e o elemento essencial para isso é, sem dúvida, a música, hoje amplamente divulgada em redes e plataformas digitais.
Retomo uma das questões citadas por Lajolo (2018) para fazer comentários a respeito da relação entre música popular e poesia. No cenário da música brasileira, são muitos os artistas que realizam o trabalho musical voltado aos sentidos múltiplos da poesia e da literatura. A cantora e compositora Adriana Calcanhotto é um exemplo de artista que desenvolve a carreira musical voltada à valorização do gênero lírico. Calcanhotto é a organizadora de uma antologia de haicais, de uma antologia de poesia contemporânea pela Companhia das Letras, intitulada É agora como nunca, de 2017 e autora de Saga Lusa: o relato de uma viagem, publicado em 2008 pela editora Cobogó, onde narra uma viagem feita à Portugal por ocasião da turnê de lançamento do disco Maré.
No site desta editora consta a informação de que ela fez canções com os poemas de Mário de Sá-Carneiro, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar. Além de escrever e compor, a cantora ilustrou os livros O poeta aprendiz e Melchior. E não é somente isto. A canção Esquadros foi objeto de estudo da escritora e pesquisadora Noemi Jaffe. O texto foi publicado no livro Lendo música: ensaios sobre canções, de 2007. Ainda a respeito da importância da linguagem na construção do texto, temos a letra de A fábrica do poema, música do álbum de mesmo nome e lançado por Adriana Calcanhotto em 1994. Veja-se a letra da canção:
A fábrica do poema
Sonho o poema de arquitetura ideal
Cuja própria nata de cimento
Encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair
Faíscas das britas e leite das pedras.
Acordo!
E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
Acordo!
O prédio, pedra e cal, esvoaça
Como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se,
Cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido
Acordo, e o poema-miragem se desfaz
Desconstruído como se nunca houvera sido.
Acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas
E os ouvidos moucos,
Assim é que saio dos sucessivos sonos:
Vão-se os anéis de fumo de ópio
E ficam-me os dedos estarrecidos.
Metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
Sumidos no sorvedouro.
Não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita
No topo fantasma da torre de vigia
Nem a simulação de se afundar no sono.
Nem dormir deveras.
Pois a questão-chave é:
Sob que máscara retornará o recalcado?
Imagem: Cantora Adriana Calcanhotto / Reprodução
Retomo a pergunta-subtítulo e afirmo, sem hesitação, que música popular é poesia. O desafio está em convencer os que mantêm um discurso obsoleto a esse respeito a mudar de ideia. Buscar excelência na escrita não significa apenas usar roupa formal fechada ou seguir os preceitos da religião literária politicamente correta de algum continente do mundo. Buscar excelência na música parece ser algo equivalente. Isso, sem dúvidas, os compositores da música popular brasileira tem conseguido. Dessa forma, originalidade na letra e movimento na música conferem o êxito da canção e do intérprete.
Há quem use apenas roupa formal e separe a língua portuguesa correta de outra mais “chula”. Entretanto, a língua pode redimensionar possibilidades poéticas e um ambiente antes fechado em si mesmo pode tornar-se multipolar. O ambiente da composição musical me parece um dos menos conservadores em se tratando de criação artística. Poesia não vende, muitos dizem. Ouço também: poesia não é literatura ou ainda: música não é poesia. Mas por que isso acontece?
Sabe-se que a escrita da canção-poema exige do compositor um tempo de pesquisa e muito estudo que relaciona letra, ritmo e musicalidade. As canções brasileiras contemporâneas nos permitem pensar o sentido e a transitoriedade das coisas, o amor no contemporâneo, a relação com a família, entre outras questões. Cabe ainda ao compositor pensar o efeito e alcance de suas composições. Dessa forma, se é verdade que poesia não vende e que música não é poesia, por que há tantos escritores de poemas e compositores de música escrevendo poesia em forma de canção? Que poder é esse que a poesia-canção exerce sobre nós?
Nossos sentidos sabem que canção é poema e não são poucas as letras de músicas que consagraram as vozes hoje conhecidas na música popular brasileira. Perseguem o ritmo e o dinamismo da língua compositores como Arnaldo Antunes, Zelia Duncan, Gilberto Gil, Chico Buarque, entre outros. A “fábrica de poemas” nacional nunca parou de crescer e render bons frutos.
Penso no que dizem os testemunhos que se vestem com exacerbado rigor diante das questões aqui colocadas. Devem se retirar por um instante de nosso cenário, repensar argumentos falidos ou reconhecer a inconveniência de certos posicionamentos em relação a tudo o que aqui foi exposto.
Admito minha postura estoica e ouso falar em destino. A poesia e a canção parecem estar destinadas uma à outra. Sendo assim, ouso emprestar a frase de Adriana Calcanhotto e deixo aqui mais uma provocação: quando convidado, sob que máscara retornará o recalcado? Ah, traga luvas. Poderá ser preciso tocar o dedo na ferida. Prepare os ouvidos para sentir o gosto de um dos mais belos poemas do cantor e compositor Arnaldo Antunes:
Pedra de pedra
pedra de pedra de pedra
o que a faz tão concreta
se não a falta de regra
de sua forma assimétrica
incapaz de linha reta?
talvez a sua dureza
que mão alguma atravessa
tateia mas não penetra
o amálgama dos átomos
no íntimo da molécula?
será por estar parada
em sua presença discreta
sobre o chão mimetizada
obstáculo na pressa
onde o cego pé tropeça?
pedra de pedra de pedra
impenetrabilidade
íntegra ilesa completa
igual na luz ou na treva
do Cáucaso ou da Sibéria
o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?
casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
apenas de si repleta
pedra de pedra de pedra
pousada em cima da terra
alheia à atmosfera
que a faz repousar pesada
no berço da sua inércia
com sua massa compacta
onde planta não prospera
e nem bactéria medra
sobre a crosta que o sol cresta
até seu nome empedra.
penha de penha de penha
fraga rocha roca brenha
por que se faz tão concreta?
por sua idade avançada
ou por rolar pela estrada?
talvez por estar inteira
entre uma e outra beira
de sua forma coesa
que se transforma em areia
quando o tempo a desintegra?
ou só porque não anseia
ser outra coisa e não esta?
nem pessoa nem floresta
nem mesmo a mera matéria
que a ideia não alcança?
Cantor Arnaldo Antunes / Midiorama
Referências
ANTUNES, Arnaldo. Pedra de pedra. Disponível em: https://escolaeducacao.com.br/melhores-poemas-de-arnaldo-antunes/. Acesso em: 16 abr. 2022.
LAJOLO, Marisa. Literatura: ontem, hoje, amanhã. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
Outras referências
CALCANHOTTO, Adriana. A fábrica do poema. Rio de Janeiro: Epic/Sony Music: 1994. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pUdfb_7oy-U. Acesso em:16 abr. 2022.
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.