A falácia da meritocracia no Brasil
Nos últimos anos, o Brasil e o mundo vivenciaram a divulgação de mitos que destruíram a solidariedade e possibilitaram reconhecer as conquistas individuais como inata ou merecido sem entender um sistema de privilégios presente em nossa sociedade a partir das relações de poder.
O conceito de meritocracia é definido como a capacidade de um indivíduo de prosperar a partir das suas capacidades sem ajuda da família, do Estado ou de qualquer outra instituição, ou seja, já através da sua definição a defesa da meritocracia é uma grande falácia, porque ele ignora que as sociedades são formadas a partir da diferenciação econômica, social e psicológicas entre os indivíduos através das diferentes classes sociais e a ocupação dos espaços de poder.
A utilização da meritocracia começou a ganhar amplitude a partir de autores progressistas como uma crítica à defesa do grande individualismo e que as conquistas só são alcançadas a partir de um esforço pessoal desde que o esforço individual seja realizado. Os progressistas afirmaram que não podemos tratar a exceção como regra e que as conquistas individuais estão inseridas em um sistema de privilégios a partir da construção social, política e econômica dos países.
Porém, a direita passou a tratar a meritocracia a partir da década de 1990 de forma errônea, para não dizer mau-caráter, ao culpar o indivíduo por seu fracasso econômico e as dificuldades econômicas impostas a maioria da população. Ouvimos repetidas vezes as expressões “você não conseguiu o sucesso, pois não se esforçou o bastante”, “falta força de vontade”, “você não está direcionando as suas forças e investimentos no caminho certo”, mas também, a pior na minha opinião, “você é empreendedor de você próprio”.
Observamos coach, empreendedores e herdeiros afirmando diariamente o que o seu sucesso foi provocado pelo seu esforço, sua determinação, a sua doação de tempo integral para o seu estudo e o negócio da família, além da afirmação quase diária que todos que se esforçam podem conseguir ser um milionário de sucesso, ou seja, as classes privilegiadas passaram a enxergar o seu privilégio como algo inato ou merecido.
Para ser o empreendedor de sucesso basta se esforçar e isso não leva em consideração o acesso às melhores instituições de ensino, diferentes cursos, o acesso desigual aos bens culturais, mas também acesso aos bens culturais.
É necessário destacar, que os defensores das conquistas individuais por meio da meritocracia atacam as políticas de ações afirmativas, ou seja, a execução de políticas públicas focalizadas em minorar a desigualdade econômica e social entre grupos sociais em uma sociedade, como acesso à universidade e ao mercado de trabalho.
Segundo o sociólogo Jesse de Souza, em seu livro A elite do atraso: da escravidão a Lava Jato de 2017 a classe média possui um sistema de acesso as estruturas sociais de capacitação maior, em relação às classes populares para o sucesso escolar e depois para o sucesso no mercado de trabalho, como a estrutura familiar e ao capital imaterial cultural.
A classe média compra as horas livres necessárias e para que seus filhos consigam o sucesso que é esperado para seus herdeiros, entretanto naturalizam esse sistema para legitimar a ocupação dos espaços de poder e a permanência da desigualdade social no país. Mesmo assim, as classes mais abastadas defendem a meritocracia a partir do seu esforço e do seu trabalho, mas muitos se esquecem das suas heranças e dos benefícios oferecidos pelos seus responsáveis. É até mesmo engraçado como os herdeiros observam as grandes heranças como um peso e afirmam que a posição que alcançaram nas empresas herdadas é somente fruto do seu esforço individual.
A afirmação eu trabalhei desde novo é repetida inúmera vezes por filhos de empresários, mas nunca precisaram interromper os seus estudos, os seus cursos extraclasses e até mesmo o seu tempo livre ao qual consegue acessar livros, cinema, teatros e clubes, para realizar a atividade laboral que complete a renda familiar e até mesmo seja a renda familiar.
O Brasil possui como maior característica histórica e social o processo de exploração a partir da escravidão e mesmo o processo de abolição da escravidão não significou o processo de integração a partir das novas relações de trabalho que emergiram no momento.
Somente o processo de exclusão da maior parte das pessoas durante quase 400 anos já seria suficiente para impossibilitar qualquer defesa das habilidades e esforços individuais para justificar as conquistas, ou seja, a maior parte da população até hoje está alijada dos mecanismos que possibilitam a ascensão social independentemente do seu esforço social.
Ademais, as pessoas não partem das mesmas condições de acesso aos bens e isso por si só inviabiliza a defesa da meritocracia como um sistema social vigente. Nenhum lugar do mundo capitalista, com destaque para os países construídos a partir dos sistemas colonial e escravocrata podem defender a meritocracia de forma inata. Não reconhecer o sistema de privilégios é naturalizar a desigualdade e no Brasil a defesa irrestrita da meritocracia, alavancada pelas redes sociais, beira o mau-caratismo.
Este artigo foi escrito por Magno FERREIRA e publicado originalmente em Prensa.li.