A foca que fez fofoca
Parece nome de conto infantil, mas não é.
No jargão jornalístico, “foca” é quem está começando na profissão; sim, quem irá amargar as piores tarefas possíveis, que ninguém na redação não quer, nem pintado de ouro e com luzes neon.
Na flor dos meus vinte aninhos, trabalhando numa floricultura pra conseguir pagar a faculdade (apesar do trocadilho), consegui um estágio num jornal paulistano que nem existe mais.
Fazia um pouquinho de tudo naquela redação (inclusive passar café). Mas ansiosa que sou, enchia muito a paciência da chefia pra me dar alguma responsabilidade.
Responsabilidade irresponsável
Meados de dezembro de 1990, o chefe de reportagem mandou me chamar. Na maldade.
“Ô menina! Cê não quer fazer algo útil? Arruma uma fofoca sobre o último capítulo da novela. Você tem vinte minutos. Preciso fechar o caderno de TV”.
A novela em questão era Pantanal, da TV Manchete. A maior pedra no sapato da Globo em todos os tempos. Humilhação diária no Ibope.
Gelei. Não tinha a menor ideia de como conseguir algo. O chefe, percebendo, riu e soltou: “use suas fontes”.
Fontes? O máximo que eu conhecia eram as fontes de água mineral de Águas de Lindóia, e olhe lá. Mas não titubeei.
Na minha cabeça, aquele homem continuava gargalhando da minha pobre situação.
Situações desesperadas…
Corri pro térreo. Orelhão. Vantagem: meu namorado trabalhava na TV Manchete. Desvantagem: trabalhava em um setor que não tinha nada a ver com novelas, e ainda por cima em São Paulo, longe dos estúdios do Rio.
Três fichas depois, ele me adiantou tudo o que sabia. Ou seja, nada. Apenas ouvira boatos que a Globo mexeria na programação da noite seguinte de um modo diferente para minimizar o estrago que o último capítulo faria na audiência.
Isso não era exatamente novidade. Eles já vinham fazendo isso há meses, sem sucesso.
… exigem atitudes desesperadas
Resolvi bancar a aposta. Cheia de si, peguei o elevador e encarei o chefe.
“A Globo vai mexer na programação”
“Isso não é fofoca, nem informação”, ele retrucou.
Ele estava certo. Então, fiz uma coisa desesperada, louca pra marcar ponto e me impor na Redação.
Blefei.
Sei que isso jamais pode ser feito em jornalismo, e jamais fiz novamente. Mas baseada apenas na lógica, dobrei a aposta:
“A Globo vai botar a novela das oito pra bater na Manchete. Vai esticar a Rainha da Sucata até não poder mais”.
De fato, a área de confronto de Pantanal era em cima da linha de shows global, na qual batia sem dó. Eventualmente a Globo esticava a novela de modo a “morder” o primeiro bloco da trama pantaneira, sem muito efeito. Portanto, uma estratégia destas seria esperada em uma noite que prometia ser desastrosa. Questão de lógica.
“Tem certeza disso, menina?”
“Claro!”
“Tua fonte é confiável?"
“Totalmente!”
Óbvio que era. Se eu não confiasse em mim, quem mais confiaria?
“Bom que esteja certa, porque vou usar essa informação. Se der barriga, nem volta pra cá”.
Pânico. A gente vê por aqui.
Fui pra casa. Contei para meu namorado o que havia feito. Em lágrimas. Ganhei um abraço, daqueles que os condenados recebem. Certeza, havia assinado minha demissão. Acabado com minha carreira que nem havia começado!
Desnecessário dizer que não dormi. Pela manhã, lá estava a informação num cantinho da reportagem. Quase imperceptível para olhos humanos.
Para mim, parecia piscar e rodopiar em 3D.
Passei o expediente roendo unhas, suando frio e com náuseas. Uma colega chegou a perguntar “de quantos meses” eu estava.
A hora da verdade
À noite, deuses do jornalismo e os santos padroeiros dos estagiários entraram em ação. Num acontecimento inédito, Rainha da Sucata começou depois do JN e se estendeu até o final de Pantanal.
Quase duas horas de novela das oito no ar. Mais insano que imaginei.
A Manchete, coroada vencedora com uma diferença assustadora de vinte pontos no Ibope.
Cheguei na redação na manhã seguinte. “Foquinha sortuda”, o chefe grasnou. “Parabéns”.
Sorri, vitoriosa. A verdadeira campeã do confronto era eu.
Sorte de principiante
Imagino hoje, ele devia ter alguma informação a respeito e se divertiu com minha angústia. Ou não teria publicado sem checar.
Dali pra frente, ganhei algumas pautas para desenvolver, peguei confiança e comecei minha carreira de jornalista pra valer. Às custas de uma aposta extremamente perigosa.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.