A Forma da Água - Uma Fábula dos Nossos Tempos
Dirigido por Guillermo Del Toro, " A Forma da Água" é bem mais que um filme romântico não-convencional. Ambientado no começo dos anos 1960, ele é um sensível e delicado conto de fadas adulto e uma bela fábula moderna sobre a solidão, desajuste, comunicação e incompreensão.
Eliza (Sally Hawkins ) não pode falar. Muda de nascença (aparentemente) ela leva uma vida metódica e solitária. Seus únicos relacionamentos na vida são com o vizinho Giles (Richard Jenkins), um velho artista gráfico e Zelda (Octavia Spencer ), sua colega de trabalho numa instalação científica do governo onde trabalham como faxineiras.
A chegada do novo chefe de segurança do local, Strickland (Michael Shannon ) também é marcada pela vinda de um contêiner repleto de água onde uma criatura (Doug Jones) está confinada. Após um primeiro contato estranho e ocasional com o ser, as duas retomam suas atividades.
Mas a curiosidade de Eliza em saber mais sobre o dito monstro é maior. Os contatos cada vez mais crescentes e diários vão selando entre os dois um laço de afinidade e amizade.
O cinema é uma atividade que nasce de um processo de criação coletiva comandado pela figura do diretor. Na maioria das vezes, o cineasta é contratado para dirigir um projeto pertencente a um estúdio. Mas em outras situações, ele é o dono do projeto e o realiza com liberdade e sem interferência de terceiros.
É o que chamamos de Cinema Autoral. Um filme autoral carrega em si as características do diretor, como o estilo de um escritor em um livro. Nesse sentido é que a marca singular do diretor mexicano Guillermo Del Toro se destaca.
Conhecido pelos seus filmes repletos de imaginação, fantasia, um certo tom sombrio e criaturas esquisitas, sua batuta criativa é também um reflexo de sua personalidade. Del Toro era uma criança solitária na infância e buscava alguma válvula de escape em livros, quadrinhos e cinema, principalmente nos antigos filmes "B" de monstros americanos dos anos 1950. O seu favorito era justamente o clássico "O Monstro da Lagoa Negra" de 1954.
A paixão por criaturas de látex o acompanhou até a sua profissionalização no cinema, quando pôde criar seu próprio filme de seres estranhos, o aclamado "O Labirinto do Fauno".
Anos depois, as criaturas de Del toro fizeram sucesso em "Hellboy", o herói disfuncional que lutava para se encaixar, um tema que está muito presente em "A Forma da água", mas há também outra coisa em comum nos dois filmes, foi em "Hellboy" que Guillermo Del Toro criou com sua equipe o personagem Abe, um adorável ser aquático interpretado pelo ator Doug Jones, que também interpreta o ser anfíbio de "A Forma".
É possível se dizer que determinados filmes cumprem o que prometem e outros os fazem apresentando a mais pura e refinada técnica cinematográfica. Este filme é sobretudo um minucioso preparo de roteiro onde nada é colocado em cena de maneira aleatória e vã da primeira à última cena. Eliza acorda, "submersa em água", põe ovos do seu almoço para cozinhar, marca o tempo num despertador -em forma de ovo - para poder tomar o seu banho muito prazeroso numa banheira.
Ela se apronta, sai, cumprimenta o vizinho, desce as escadas quando o dono de cinema na parte de baixo da rua lhe dá ingressos para um filme. Finalmente ela segue ao trabalho. Em apenas uma sequência temos 80% da ambientação do filme apresentada em apenas um minuto e meio. Outro ótimo artifício de bom aproveitamento do roteiro é que a história simplesmente acontece, sem que sejam necessárias inúteis firulas narrativas.
O espectador já sabe que se trata da história de amor de uma mulher e um ser aquático. Pouco importa o fato de duas simples faxineiras entrarem e presenciarem atividades de uma instalação que, em tese, deveria ser secreta, com assuntos secretos.
Pouco importa se ali estão acontecendo maquinações para a corrida espacial durante a Guerra Fria entre EUA e U.R.S.S. Tudo é apenas pano de fundo para contar a história de um punhado de personagens solitários, desajustados, quase párias.
Todo o elenco retrata alguém que, de alguma forma, lida com a solidão. O chefe de segurança tirano, abusador, machista, casado, pai e absolutamente infeliz. O cientista que na verdade é um agente russo infiltrado e que precisa fingir ser um americano, a mulher negra casada com um completo inútil incapaz de se comunicar com ela.
Giles, o melhor amigo de Eliza, é um homem quase sexagenário que vive de fazer ilustrações publicitárias pintadas que já não consegue mais vender porque as agências preferem fotografias.
Giles é gay, mas não pode assumir sua sexualidade, se contenta em ir à uma lanchonete para ser servido por um garçom do qual nutre uma paixão platônica. Eliza é uma mulher solitária que é muda, mas pode ouvir, ela possui dois bons amigos, Giles e Zelda, mas ambos não podem lhe preencher naquilo que lhe falta, algo que ela encontra num ser ainda mais solitário, ainda mais estrangeiro e deslocado.
O "monstro" não "fala" nenhum idioma inteligível, Eliza não pode emitir sons, mas ambos se entendem pela expressão corporal, pelos gestos de empatia num processo de construção diário.
Num dado momento, Eliza passa a usar a música como uma ferramenta de contato e tudo se consolida. Aliás, a música é um elemento importantíssimo no filme, quase uma maneira de equilibrar a ausência de diálogo falado de Eliza com os temas musicais, quase sempre oriundos de antigos filmes musicais que o personagem Giles costuma ver de sua TV, um elemento pontual de alegoria e homenagem que o diretor quis prestar ao cinema, e que corrobora com a própria metalinguagem dentro do filme: filmes românticos do passado quase sempre eram musicais.
A outra metalinguagem está no próprio "monstro". Ele é uma referência - ou talvez seja o próprio monstro do filme de 1954. Não uma continuação, mas uma releitura sob uma ótica atualizada.
Nesses filmes havia, além da criatura, uma mocinha indefesa que quase criava um elo de empatia com o ser e um herói cheio de testosterona para lhe salvar.
Aqui há uma desconstrução disto, há uma revisão disto, uma crítica ao machismo e o encorajamento da ideia de que uma relação de amor precisa ser vivida por completo, não importando quais sejam os parceiros, algo que é muito bem descrito na entrega dos dois atores principais que contam apenas com o gestual para mostrar uma relação verossímil entre homem e mulher. Quem é o monstro de fato? Por que as diferenças precisam importar se há comunicação, confluência e sentimento?
Como dito antes, "A Forma da Água" é uma fábula. Precisa de elementos fantásticos para confluir numa "moral da história" no fim. Um mundo que poderia existir dentro de uma década de 60 inventada e propositalmente exagerada. Mas um conto onde um de seus personagens pode refletir sobre sua própria frágil condição de não-pertencimento, do estar fora do seu elemento. Um conto onde o "Felizes Para Sempre" pode estar simplesmente dentro do quanto podemos ser "ouvidos" e compreendidos.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.