( A-HA, U-HU ) O Mickey Mouse é Nosso?
Domínio público é bem mais que um status legal atingido por toda obra que agregue uma informação, saber ou um caráter artístico depois de um tempo. É a confirmação do próprio direito ao seu livre consumo.
Em tempos em que a internet simplesmente democratizou o acesso a praticamente tudo o que já foi concebido pela mente humana, os debates sobre direitos intelectuais se acirraram como nunca.
E a notícia de que em 2024, o símbolo máximo da Disney, o simpático ratinho Mickey Mouse deixará de ser uma propriedade privada para poder ser usada e explorada por todos, não será somente ignorada como já foi em outros tempos.
As razões pelas quais algumas ideias dão mais certo que outras nunca deixaram de nos intrigar, principalmente quando falamos de um império midiático que foi erigido, sem exageros, em torno de um camundongo.
Essencialmente, o famoso ratinho nunca diferiu muito dos seus congêneres do mundo das animações na época de seu surgimento, mas a sua estreia da maneira como o conhecemos no curta Steamboat Willie (O Barquinho a Vapor Willie) em 18 de novembro de 1928 no antigo Colony Theatre de Nova Iorque, trazia algo inédito até aquele momento em desenhos animados: o som.
O trabalho de animação muito bem sincronizado com música, voz e efeitos sonoros encantou tanto plateias inteiras nos EUA, que acabaram por tornar o personagem tão popular como um astro de carne e osso da época, alguém do nível de Charles Chaplin, por exemplo.
O Mickey foi uma segunda tentativa de Walt Disney em criar uma personagem de sucesso. No ano anterior, ele havia concebido Oswald, The Lucky Rabbit, conhecido aqui como o Coelho Osvaldo, que fez um estrondoso sucesso nos curtas animados produzidos pelo pequeno estúdio fundado por ele e o irmão, Roy em 1923, quando deixaram a pequena cidade de Marceline no Estado do Missouri, para tentar a sorte no promissor mercado do cinema de animação em Hollywood.
Os irmãos Disney tinham um contrato de distribuição dos curtas do personagem assinado com os estúdios Universal, mas alguns meses depois, a dupla perdeu os direitos totais da criação para o mesmo estúdio devido umas "pegadinhas" marotas embutidas no acordo assinado.
Mas a adversidade virou oportunidade e todos sabemos o que aconteceu depois com a segunda boa ideia de Disney: outro roedor estilizado, bem semelhante ao primeiro e com orelhas menores.
Com um dos maiores estúdios de cinema de Hollywood e um parque temático de sucesso no patrimônio, a morte de Walt em 1966 causou incertezas naturais sobre o futuro da companhia da qual ele era onipresente, e a maior das preocupações estava justamente sobre a propriedade intelectual do Mickey que cairia em domínio público dali a vinte anos.
A legislação de domínio público sobre uma determinada obra é, com uma ou outra variante, universal. No Brasil e outros países, ela passa a valer a partir do septuagésimo ano de morte do autor no primeiro dia de janeiro.
Nos EUA, a legislação existente desde 1909 indicava que esse prazo era de 56 anos a partir da criação da referida obra, e seu autor sequer precisava estar morto. Para a Disney, que ganhou muito dinheiro fazendo animações baseadas em obras de domínio público, aquilo não estava certo.
A empresa promoveu uma verdadeira cruzada para a mudança das leis de propriedade intelectual no país realizando um lobby pesadíssimo entre os congressistas fazendo polpudas doações aos parlamentares (algo que é permitido na política americana).
Finalmente em 1976, a ofensiva logrou êxito, o Congresso alterou a antiga lei e o governo americano estendeu o prazo do domínio público para 75 anos. Nos anos 1990, com o prazo perto de vencer novamente, a Disney voltou a repetir a estratégia, fazendo o então CEO da empresa, Michael Eisner ir visitar pessoalmente cada gabinete de Congressistas para propor outra mudança. O prazo foi espichado de novo, desta vez para 2024, ou seja, vencimento daqui dois anos.
Para fins práticos, o domínio público passa a vigorar sobre a curta animado e todos os elementos que estão nele, incluindo o Mickey. A musiquinha assoviada por ele, O barquinho, um papagaio, patos, um bodinho, uma vaquinha, o João-Bafo-de-Onça e a Minnie Mouse, tudo nosso. Mas apenas AQUELAS VERSÕES desses personagens e do Mickey que aparece lá: olhos sem contorno, sem as cores e sem as populares luvinhas brancas nas mãos.
Variações visuais sofridas pelo personagem ao longo dos anos precisam cumprir seu próprio prazo de domínio público. Uma pessoa poderia fazer o que quisesse com o Mickey de 1928, criar histórias, animações, quadrinhos, games, action figures etc. sem autorização da Disney. Em tese sim.
Mas apesar de aparentemente não ter feito nenhum novo movimento para mudar as leis como quis nos últimos anos, é ingenuidade achar que a Disney não esteja tomando outras medidas para proteger sua propriedade intelectual.
No Brasil, por exemplo, existe uma delimitação entre os direitos patrimoniais e morais de uma obra. O patrimônio é a obra e a moral é a autoria. Pela lei 9619/98 do direito autoral, artigo 24, inciso segundo, a integridade da obra precisa ser respeitada mesmo em domínio público. Em tese, um herdeiro legal de um autor poderia acionar a justiça se julgasse ofensiva uma reinterpretação da obra original, por exemplo.
Isso não funciona nos EUA, mas ainda assim a Disney poderia usar esse argumento para judicializar a questão, alegando que um personagem infantil de uma empresa que produz conteúdo familiar não pode ter uma marca que se confunde com sua história há quase um século, usada de maneira inadequada por um terceiro. Seria um debate público interessante.
A Disney registrou o nome "Mickey Mouse" como marca e como sabemos, os direitos de marca continuam privados, indefinidamente. Ou seja, você poderia criar um gibi do Mickey, mas não estampar o nome na capa, apenas usá-lo internamente no interior da revista. E se a própria identidade visual do personagem estiver protegida pelo Trademark, aí você terá de decidir se segue com a insanidade ou enfrenta um processo da grandalhona indústria do entretenimento.
É provável que ainda não teremos respostas claras, mesmo a partir de primeiro de janeiro de 2024, quando essas mudanças passam a valer. Mas temos a certeza de que esta será uma nova página a ser escrita na história do direito autoral, não só da Disney ou do Mickey, mas de toda uma indústria cultural. E saberemos até onde vão os limites da influência que poucos querem exercer sobre o direito de muitos.
Em tempos em que a livre informação está ao alcance de todos, muita gente está disposta a lutar contra quem deseja mudar leis indefinidamente apenas por não gostar delas. O episódio do "Stop Online Piracy Act", um projeto de lei organizado por congressistas americanos que estavam nas mãos dos lobistas da indústria em 2012, teve uma repercussão tão ruim, que foi recusado pelo mesmo congresso.
Quando Walt Disney criou o seu mais famoso personagem, inspirado num ratinho de verdade, o mundo era diferente, sua empresa era diferente. Disney era um tiozinho bonachão que ia para a TV contar histórias. Hoje, a maioria das audiências sequer consegue associar o nome àquela pessoa.
Hoje é mais provável que alguém considere que o símbolo da empresa é o Homem-de-Ferro e não o Mickey Mouse. É difícil estabelecer uma conexão autêntica entre a inocência pueril do bom camundongo com um conglomerado que possui tantos tentáculos no business.
Se não resolver brigar com as leis novamente, fará um bem a si próprio, vai estabelecer diálogo com um mundo complexo e diverso e deixar de ser visto como um Kraken midiático, se reconectando com as aspirações de seu fundador - pelo menos no discurso.
Todas aquelas lições que estão nos magníficos desenhos animados e que só parecem valer quando você paga o ingresso do cinema ou a mensalidade do streaming. Aspirações de um mundo melhor, de boas ações, generosidade, sonhos e ternura.
E aprender compartilhar um pouco que seja, cabe como uma luvinha branca nisto tudo.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.