A HISTÓRIA DA BOSSA NOVA parte 1 - Prelúdio em dor-de-cotovelo
Um banquinho, um violão, canto baixo e até desafinado, minimalismo, letras felizes, pueris até. A musiquinha do climinha, dos lounges, dos backgrounds. De uma Copacabana ensolarada, a trilha sonora de um Brasil promissor que nunca se concretizou.
Estas são as noções que qualquer pessoa musicalmente bem-informada tem desta movimentação musical surgida nos fins dos anos 1950 e que foi um necessário elemento disruptor cultural no país.
A Bossa Nova ganhou projeção nacional e mundial até meados da década de 1960, mudando de vez a forma de se fazer música no Brasil. Mas o tempo entre a gestação, o parto e o nascimento deste novo gênero, foram longos...dolorosos até.
Por décadas, o reinado de cantores com grande potência e extensão vocal era norma num cenário musical onde quase não se permitia mudanças técnicas ou estéticas. Era possível exigir um pouco menos de técnica, quando as gravações tinham uma finalidade mais lúdica em sambas e marchinhas.
Algo que era expressamente proibido aos cantores profissionais de rádio a quem era exigido um rigor de canto quase operístico. O primeiro espasmo de ruptura com este modelo vigente veio com o cantor Mário Reis no início dos anos 1930. Mário era conhecido pelo jeito manso de cantar, que era justamente o oposto de seus congêneres da época.
Tido como o primeiro cantor moderno da nossa música, Reis cantava de um jeito baixinho, quase conversado. Noel Rosa, grande letrista do samba, tinha uma voz pequena e bastante desafinada, que nunca o impediu de gravar suas próprias composições. Mas tanto Mario quanto Noel eram honrosas exceções que não mudaram muito as coisas naquele momento, mas apontaram um caminho.
As rádios Nacional, Tupi, Mayrink Veiga, todas sediadas no Rio de Janeiro, cuidavam de irradiar para o resto do Brasil, uma constelação de astros e estrelas de vozes maravilhosas, apelidados como Reis ou Rainhas daquele veículo. Vozes portentosas acompanhadas por orquestras residentes das emissoras, com arranjos perfeitos e barrocos.
Mais tarde, na década seguinte, a então capital política e cultural da República se abriu para a música vinda do Nordeste. Tivemos a disseminação do baião pelas mãos do pernambucano Luís Gonzaga e a música praieira do baiano Dorival Caymmi, que cantava baixo (apesar da voz grave) acompanhado de um violão quase minimalista.
A produção do mercado da música de então, estava centrada pela ação das rádios, gravadoras e os grandes espetáculos em grandes teatros, hotéis e cassinos como o da Urca. A Era do rádio começa a entrar em declínio em fins dos anos 50, ou pelo menos a influência das rádios diminuía por causa de um concorrente que tomava corpo e forma: A Televisão.
Uma coisa não mudou neste ínterim. O que se tocava nas rádios da época era o samba. Não o samba do morro, do pandeiro e do cavaquinho, mas um samba midiático, sem batuque, feito para tocar no rádio e na casa de quem nunca subiu o morro nem sabia o que era uma roda de bambas, canções acompanhadas por orquestras, o chamado samba-canção.
Com letras extremamente dramáticas, que falavam de amores desfeitos, inatingíveis e dores, dores e mais dores, o samba-canção era popular como os ritmos de "sofrências" atuais. Uma música de dor-de-cotovelo.
Com cantores como Jamelão, Lúcio Alves, Tito Madi, Nora Ney, Elizeth Cardoso, Dick Farney e Dolores Duran, astros que nos anos 50 fizeram grande carreira nas rádios, nos discos e nas boates que surgiam no Rio, substituindo os grandes espaços dos teatros e cassinos fechados pelo decreto de Eurico Gaspar Dutra em 1946.
Essas boates também eram uma alternativa de trabalho para os músicos que ficaram desempregados naqueles cassinos e passaram a tocar nesses lugares menores, às vezes em mais de um por noite.
Acontece que muitos desses músicos estavam entrando em contato com as atualizações musicais dos EUA, que naquela época respiravam o Jazz, a música pop daquele tempo. Com a ausência de grandes orquestras, devido aos espaços, os músicos, sobretudo os pianistas, tiveram que adaptar os arranjos àquela realidade, usando acordes jazzisticos dentro do samba-canção.
Juntar acordes de jazz com o samba foi uma experiência informal e improvisada (como é o próprio jazz ) que acabou, muito por acaso criando uma base rítmica diferente. Os vocais continuam altos e extensos, mas em compensação, a música ganhou um certo swing que as orquestras de rádio foram incapazes de criar no passado.
Alguns desses jovens maestros pianistas que trabalhavam na noite e durante o dia faziam bicos como arranjadores nas gravadoras, disseminavam essas experiências musicais que permaneceram escondidas no ambiente esfumaçado das boates, até que foram levadas ao disco, por intermédio de cantoras geniais como Dolores Duran. Entre estes experts criadores estavam Benê Nunes, Johnny Alf, Don Salvador, João Donato, Luiz Eça, Tom Jobim. Algo começava, aos poucos, a mudar na música.
Uma semente estava sendo plantada. Como veremos, a seguir.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.