A HISTÓRIA DA BOSSA NOVA parte 2 - Pais e a mãe da criança
Anteriormente, analisamos como músicos de formação clássica ou popular que tocavam na noite carioca dos anos 1950 começaram a testar ideias musicais diferenciadas para acompanhar os cantores que estavam familiarizados ao samba-canção, ainda em voga na época.
É bem verdade que o Jazz foi grande elemento de mudança para os arranjos, mas tudo corroborava para aquelas experiências musicais dentro daquele enorme laboratório que eram as boates de Copacabana. A noite fervilhava em muitas casas que reuniam bar e pequenos shows para pequenas plateias. Monte Carlo, Bottles Bar, Baccarat's, Little Cub, Mandarim, Clube da Chave, Beco das Garrafas, Drink e Plaza eram apenas alguns dos locais mais famosos onde esses heróis da música se dividiam.
Existe uma controvérsia entre os especialistas a respeito da criação do que poderia vir a ser a Bossa Nova, mas todos concordam que o embrião estava nesta atmosfera. Além da mudança rítmica, também houve algo em relação às letras. Do peso e densidade das músicas sofridas do Samba-canção, algumas letras passaram a apresentar temas que não eram necessariamente das dores de amor, mas sim, mais solares e com alguma leveza.
Muitos acreditam que essa iniciativa fosse consequência do ambiente escuro, etílico e esfumaçado das boates, da boêmia e da vida insalubre que muitos nomes da música levavam durante o trabalho. Trazer um pouco mais de alegria e leveza às letras ajudava também a criar momentos de amenidade e diversão naquele ambiente.
Muitos foram os músicos que passaram a escrever letras que chamaremos de proto-Bossa Nova, a bossa antes da bossa. Muitas vozes femininas marcaram esse período, mas poucas estavam envolvidas nessa concepção estética de criação. É o caso da cantora carioca Dolores Duran.
Com uma carreira de intérprete já sedimentada no rádio e noite cariocas, Dolores começou, tardiamente, a escrever suas próprias canções. Ainda que a maioria da sua pequena e preciosa coleção de composições fosse de letras de dores de amores, uma delas quebrou o padrão.
Uma noite, após o fim do expediente no Baccarat’s, durante a tradicional reunião que músicos e crooners faziam para beber e conversar, o então desconhecido Tom Jobim tocou ao piano uma melodia que havia criado para que Vinícius de Moraes pusesse letra.
Dolores, que era crooner ali, ouviu tudo de uma mesa mais afastada e escreveu uma letra rapidamente num guardanapo com um lápis de delinear sobrancelhas, um processo usual quando compunha. Levantou-se, foi em direção a Tom e lhe propôs parceria, cantando a letra recém-escrita com o nobre acompanhamento do maestro.
A letra, naturalmente, foi mostrada a Vinícius que gostou tanto, que saiu da parceria deixando espaço aberto para a composição de Dolores. A canção era “Estrada do Sol”. E seu grande diferencial estava justamente no tom, que fugia do pessimismo e tristeza das composições da época, para outro de leveza e até esperança.
Dolores não gravou a música, pois morreria pouco tempo depois prematuramente aos 29 anos em 1959 em consequência de um infarto fulminante enquanto dormia. Até hoje, “Estrada do Sol” pertence ao standard da Bossa Nova, gravada por nomes de peso como Frank Sinatra.
Um pouco antes, em 1953, o pianista e cantor Alfredo José da Silva, mais conhecido como Johnny Alf, que costumava tocar com Dick Farney e Nora Ney, compôs e chegou a gravar duas músicas cuja sonoridade e letra podem ser consideradas como um indicativo do surgimento da Bossa: "Céu e Mar" e "Rapaz de Bem". Além do descompromisso das duas letras, as músicas traziam nos arranjos, uma sofisticação "swingada" repleta de acorde dissonantes, que viriam a ser marca registrada nas composições vindouras da Bossa.
As canções foram um tipo de prenúncio, mas não foram fortes o suficiente para modificar o cenário de então. Eventualmente, as duas acabaram sendo resgatadas nos anos 1960 quando a Bossa Nova explodiu nas paradas.
Outro músico e compositor que se arriscou a escrever letras e melodias inovadoras para aquele momento foi Newton Mendonça, um dos primeiros parceiros de Tom Jobim. Newton fora vizinho e amigo de infância e juventude de Tom e ambos passaram a trabalhar juntos como músicos da noite no mesmo período. Seu primeiro sucesso foi a canção "Foi a Noite", que acabou sendo gravada por Sylvia Telles em 1957.
Sylvia viria a ser uma das musas da Bossa Nova, mas naquele período era uma estrela em ascensão dos samba-canções, "Foi a Noite" trazia um frescor diferente no seu repertório. Newton é muito lembrado por ter composto músicas que se tornariam clássicos da Bossa Nova, dentre elas, "Samba de Uma Nota Só", cuja letra brincava com a melodia da música e "Desafinado", que estaria no disco que é considerado o inaugurador do gênero, "Chega de Saudade" de João Gilberto.
Newton morreu também muito cedo de infarto aos 33 anos em 1960, quando a Bossa Nova já estava fundamentada. Pode-se dizer que a Bossa Nova era uma ideia que pairava no ar sobre algum tipo de modernização da nossa música. Ideias soltas que precisavam de algum tipo de unidade, de formatação. Que veio ocorrer quando os anos 1950 estavam terminando. Bastava apenas o catalisador certo, a voz certa, a batida e o disco certos.
A seguir, Tom Jobim e Vinícius de Moraes e de quebra, Elizeth Cardoso.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.