A maior cobertura das Eleições em todos os tempos
Daquelas histórias onde se conta o milagre, mas se esconde o santo. Mais de vinte anos depois, considero o "crime" prescrito. O relato a seguir é, acima de tudo, uma homenagem à força do Rádio, à criatividade e o improviso, com uma mão providencial de tecnologias que ainda engatinhavam.
É a história de uma cobertura jornalística que virou referência, foi líder absoluta de audiência, mas foi principalmente uma obra da imaginação.
O ano era 2002. As eleições presidenciais se aproximavam. Prometiam ser bastante tensas e acirradas, embora que num clima bem diferente das atuais. Luís Inácio Lula da Silva e José Serra eram os favoritos.
Prestava serviços para uma série de emissoras de rádio e TV por todo o país. Meio que um caixeiro viajante do setor de broadcast. Um de nossos clientes era uma rádio na Baixada Santista. Mais que clientes, eram parceiros e amigos de longa data. Não fosse por isso, talvez não tivéssemos feito o que vem a seguir.
Uma ideia não recomendável
Com a aproximação do pleito, vendo que a região não dispunha de nenhuma emissora noticiosa, desde que a CBN Santos fora extinta anos antes, propus quase na brincadeira ao dono da estação: e se fizéssemos uma cobertura das eleições no mesmo nível que uma rádio segmentada faria? Com correspondentes em todo o país, atualizando dados durante a votação e depois a cobertura voto a voto?
Ele olhou, desconfiado. Perguntei: você conseguiria um anunciante local para isso? Retrucou, ainda mais desconfiado: “mas isso vai ficar uma fortuna”! Em tese, ele tinha razão. Mas eu tinha um plano em mente. Perguntou o quanto precisaria para fazer isso. Pensei um pouco e falei. Era um investimento ínfimo perto do que esperava.
“Além disso, só vou precisar dos seus locutores do horário e uns três computadores numa sala”, completei. Um tanto incrédulo, assentiu. Sentei e expliquei o plano com calma. Como ele já havia testemunhado algumas peripécias que fiz num canal de TV anteriormente, acreditou que poderia dar certo.
Em poucos dias, tínhamos um patrocinador. E menos de um mês para preparar a execução da maior cobertura de uma eleição que a região ouvira.
Aqui cabem algumas explicações: na ocasião, eu já conhecia o público e o mercado da região há uns dez anos. Sabia mais ou menos o que poderia esperar daquela aventura. Mas isso não era nem de longe o detalhe primordial: já mencionei que seria uma transmissão de rádio, não?
Uma das pessoas que me motivou a entrar para esse maravilhoso (e doentio) mundo da Comunicação, a radialista mineira Raquel Diniz, disse ainda na minha adolescência: “televisão é bom, mas rádio é paixão”. Que o rádio não conhecia limites.
Acho que muitos conhecem a história da transmissão de A Guerra dos Mundos, produzida pelo genial Orson Welles, que via rádio fez os norte-americanos terem certeza que eram invadidos por alienígenas. A cobertura das Eleições seria um belo modo de provar a validade dessa força incomensurável do Rádio.
A sorte está lançada
Dia da transmissão. Cheguei pela manhã na emissora com uma gigantesca equipe de quatro pessoas. Eu inclusive. Locutores à postos. Dias antes, havíamos produzido toda a plástica da transmissão. Trilhas, vinhetas, coisa que não faria feio para nenhuma rádio de notícias da época.
Quatro pessoas para produzir um evento desta envergadura podem significar algumas coisas: irresponsabilidade, inconsequência e, provavelmente, insanidade. Felizmente, não era nada disso, mas sim planejamento, jogo de cintura e muita criatividade.
A internet já estava bem avançada naqueles dias, mas nada que se compare aos dias atuais. Eram os primeiros tempos da conexão de banda larga, mas nem sonhe com fibra óptica. A velocidade era boa, mas ridícula para hoje.
Nos sentamos em frente aos computadores e começamos a monitorar tudo o que os principais portais do país, sobretudo de jornais tradicionais, publicaram. Não havia ainda o G1. Ficamos de olho no UOL, Terra, IG, BOL, StarMedia, Cidade Internet (lembra desses?)… começamos a fazer o que chamamos de “ronda” no jornalismo.
Ao mesmo tempo, tínhamos dois rádios. Daqueles de pilha. Canetas, blocos de papel e tudo o mais que o jornalismo analógico precisava. Sintonizamos rádios do país todo através das velhas e boas Ondas Curtas. Em instantes, as notícias pipocaram, e furiosamente anotamos tudo o que surgia de relevante. Centralizamos a redação dos boletins e passamos a enviar furiosamente textos para o estúdio.
Neste período, prestamos o serviço de gerenciamento do site da emissora, o que nos possibilitou publicar os boletins também em texto, em tempo real. Era uma das primeiras coberturas multimídia, senão a primeira da região.
O sistema de publicação, se não falha a memória, era a plataforma de blogs do Terra. Em determinado momento, o fluxo de postagens era tão frenético que o provedor nos contatou pedindo para diminuir o ritmo. Estávamos desestabilizando a plataforma. Lembre que a banda larga ainda não era tão larga assim.
Muito bom, muito bonito, nosso Exército Brancaleone trabalhando a toda velocidade, mas cadê os “repórteres em todo o Brasil”?
Bem, 50% do rádio, ou mais, depende única e exclusivamente da imaginação do ouvinte, certo? Nossa pequena e muito ousada equipe, munida de um gravador de mão, daqueles que usavam fita cassete, de posse das informações – verdadeiras, que fique bem claro – passou a revezar na sacada do segundo andar da rádio. Para dar aquele som ambiente indiscutível, sabe?
Assim, usando pseudônimos, nos tornamos correspondentes em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Em poucas horas, éramos referência regional. Muita gente, inclusive lideranças políticas, passaram a ligar para a emissora dando os parabéns.
Para dar um temperinho extra, fui atrás de alguns jornalistas amigos, setoristas reais, que entraram com informações de momento sobre clima, situação do trânsito, movimento das estradas… muita gente havia ido às praias naquele domingo de sol.
Mais real que a realidade
Foi quando algo inesperado ocorreu, tornando a aventura ainda mais incrível. Percebendo a repercussão, um sem número de analistas, empresários, políticos, começaram a pedir para participar da transmissão.
Um jornalista que fazia comentários políticos na estação, que não tinha a menor ideia do que estávamos fazendo, surgiu um pouco antes do início da apuração, pedindo para ancorar a transmissão. Voluntariamente.
Convidados se multiplicaram no estúdio, sem que passassem pela sala onde regíamos o caos. A magia estava garantida, e aconteceu. Gostaria de ressaltar que, mesmo usando os portais de internet, jornais e outras rádios, sempre citamos as fontes, por uma questão de ética.
A coisa tomou proporções tão grandes que, logo, outros funcionários da rádio, incluindo a direção, passaram a revezar conosco na concorrida “sacada dos correspondentes”. De repente, ganhamos “repórteres” em Goiânia, Recife, Porto Alegre, Salvador… numa atuação digna de prêmio.
Tudo continua em pizza
Imaginava-se que o resultado da apuração fosse revelado no máximo às dez da noite. Mas, nesta altura, eu havia aprendido uma lição dolorosa, numa cobertura pela TV regional oito anos antes: sempre conte com o imprevisto. E claro, o imprevisto nunca decepciona.
Em 1996, primeira eleição municipal com o uso de urnas eletrônicas, aquelas amadas e odiadas, em sua primeira versão (coisa pra beta tester nenhum botar defeito), nos disseram a mesma coisa. “Dez da noite” acabou virando cinco da manhã, numa transmissão que se tornou exaustiva por nossa ingenuidade.
Naquela apuração de 2002, não foi tão longe: apenas até meia noite e meia. Havíamos nos preparado com provisões suficientes para a alimentação, e estávamos bem tranquilos. Porém, com o andamento e o prolongamento da cobertura, o dono da rádio providenciou um belo lote de pizzas e refrigerante.
Não ficou só nisso: algumas pizzarias próximas, empolgadas com o que ouviam naquela transmissão inédita, nos presentearam com mais pizzas, a título de agrado (e singelos agradecimentos aos microfones, configurando o que chamamos de permuta).
Pouco antes do resultado final, com aquele regabofe mezzo calabresa, mezzo muçarela, a emissora parecia um restaurante. Com direito a equipamentos engordurados e um cheiro de orégano que perdurou por alguns dias.
Em tempo real
E veja como são as coisas: encerramos nossos trabalhos por volta de quinze para uma da manhã, tomando o caminho de casa com a sensação do dever cumprido. O comentarista político e seus convidados, no auge da empolgação e cheios de pizza, avançaram no ar madrugada adentro, por mais duas ou três horas.
Nos dias que se seguiram, recebemos muitos elogios sobre o trabalho realizado. A emissora, que já tinha uma certa credibilidade jornalística, cravou pontos institucionais preciosos junto ao público, colhendo também os louros no mercado.
Não mentimos em ponto algum, em relação às informações. A análise política inesperada foi um plus muito bem vindo. Já os ouvintes, jamais imaginaram que uma equipe ridiculamente pequena produziu uma cobertura tão extensa, precisa, confiável e competente. Foi por um lado uma imensa encenação. Radioteatro, sem faltar com a verdade em momento algum.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.