A Natureza Humana e seu estranhamento em Marx
‘’Até o momento consideramos principalmente apenas um aspecto da atividade humana, o trabalho dos homens sobre a natureza. O outro aspecto, o trabalho dos homens sobre os homens[…] (MARX, K, ENGELS, F. A ideologia alemã, p.39)
1. Primeiros Pressupostos
À princípio, tal como em boa parte da história da filosofia, muitas vezes essa separação foi feita e colocada em âmbitos distintos: Primeiro há o ser como natural, e depois há o ser como social. Tal separação faz com que a problemática assuma um caráter metafísico tradicional, focando-se na essência do ser, afirmando que existem qualidades inatas e pré-determinadas ao ser humano, e que, por conta do seu convívio em sociedade, tais condições foram ‘’deturpadas’’ ou apenas modificadas. Marx irá trazer a problemática para o campo materialista da seguinte maneira: A produção da vida, tanto subjetiva como objetiva, envolve uma dupla relação: uma relação natural e uma relação social. Ambas não se separam. A produção de vida subjetiva envolve o trabalho que se realiza por meio da natureza como criação de si mesmo, uma vez que o homem faz parte da natureza e ao modificá-la, modifica a si mesmo, sendo esse o pressuposto de sua hominização, o que lhe caracteriza humano. A relação social é permeada pela procriação: a partir do momento que os seres humanos procriam, tal gerenciamento da vida de sua prole envolve a ‘’cooperação de vários indivíduos, independente das condições, modos e finalidades’’[IA-p.34]. Há um ditado popular que ilustra bem essa afirmação: ‘’Nós criamos o filho para o mundo e não para nós’’.
Portanto, o primeiro ato histórico, é para Marx, a produção de meios com o intuito de satisfazer suas necessidades mais básicas tais como alimentar-se, beber, abrigar-se, produzir vestimentas etc.
Em segundo lugar, a satisfação dessas necessidades mais primárias conduz a novas necessidades, e aqui vemos o primeiro movimento histórico marxiano. Uma dessas novas necessidades é a procriação, onde surge o primeiro conceito de família. A família é para Marx a única relação social neste momento. Quando ocorre um aumento populacional, novas necessidades são geradas e com elas novos meios de produção são modificados a fim de suprir essas necessidades.
A partir desse pressuposto, Marx dirá que um determinado modo de produção tal como uma determinada fase industrial está ligados com um determinado modo de cooperação e uma determinada fase social. O modo de cooperação entre os indivíduos sociais, ele mesmo é uma força produtiva, e a soma das forças produtivas é o que condiciona o estado social. Sendo assim, a história da humanidade deve ser estudada a partir desse pressuposto materialista, uma vez que é esta conexão, que sempre assume formas novas e que depende das necessidades e do modo de produção, e não necessariamente de uma ideologia política, religiosa, metafísica, que mantém os homens unidos em uma sociedade.
A partir do momento que por meio de um determinado modo de produção, ocorre a divisão do trabalho, divisão que não é voluntária, é estabelecida uma contradição entre o interesse subjetivo de alguns indivíduos e o interesse coletivo. Estabelecida a separação entre interesses particulares e interesses comuns, a ação humana torna-se estranha e se contrapõe a ele, fazendo com que o seu próprio trabalho e a força que se exerce nele, determine uma relação de poder do objeto ao seu criador, e não ao contrário. Assim, o indivíduo tem seu trabalho limitado a um campo de atuação exclusivo e determinado (ocupação e profissão fixa) e que deve assim prosseguir e aceitar tal condição para garantir o seu meio de sobrevivência. O homem nessa condição, é submetido por uma necessidade externa, diferente da noção de trabalho que caracteriza sua hominização que é a idealização e objetivação de uma ‘’necessidade interior’’. Esse trabalho movido por uma força externa a si, Marx chamará de trabalho alienado, que será abordado com mais afinco a seguir.
2. Trabalho como manifestação da vida x Trabalho como alienação da vida
Como ressaltado anteriormente, a relação de trabalho para o homem é para Marx um pressuposto ontológico: Por meio de seu trabalho ele usufrui da natureza, modificando-a e, dessa forma, sendo parte específica da natureza, modifica-se a si mesmo. Na forma de produção capitalista, o trabalhador torna-se uma mercadoria, a mais baixa mercadoria, porque enquanto sua produção aumenta, mais miserável ele se torna. Qual a lógica que está por trás dessa afirmação? Para Marx, a economia política de sua época, indicava fórmulas gerais, abstratas, que passam a valer para a propriedade privada e não para a sociedade. O que a economia política não explicava era o porquê da relação econômica servir a propriedade privada, o que indica que, Segundo ele: ‘’razão última é o interesse do capitalista, ou seja, ela supõe o que deve desenvolver’’[MEF,p.79], focalizando a economia política em perpetuar a ganância, a guerra entre os gananciosos e a concorrência.
‘’Agora temos, portanto, de conceber a interconexão essencial entre a propriedade privada, a ganância, a separação de trabalho, capital e propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e desvalorização do homem de monopólio e concorrência etc., de todo este estranhamento (Entfremdung) com o sistema do dinheiro’’ (MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos.p.80)
Esta tal relação, Marx irá encontrar no próprio trabalho. Marx diz que a partir do momento em que se valoriza mais o ‘’mundo das coisas’’(Sachenwelt) aumenta a desvalorização do ‘’mundo dos homens’’ (Menschenwelt). Dessa forma, o trabalhador não produz apenas a mercadoria em si, ele também produz a si mesmo como uma mercadoria. Marx irá determinar quatro formas que a alienação do trabalho modifica o próprio ser do homem, e produz em si mesmo um estranhamento.
A primeira forma, é o estranhamento do trabalhador com o produto de seu trabalho. O trabalhador não mais reconhece-se na objetivação de seu trabalho, ou seja, o seu produto, mas tal produto se defronta contra ele de uma forma estranha e exerce poder sobre ele. O trabalhador para criar, necessita da natureza, tanto como matéria para a efetivação de seu trabalho, quanto meio em que o trabalho é produzido, isto é, o mundo exterior, sensível. A natureza é também, a fonte de onde o trabalhador tira seus meios de vida, tais como alimentação, vestuário etc.
Com o trabalho alienado, a natureza sensível deixa de ser um objeto imediato de sua produção, e também de ser o seu meio de vida, tornando-se assim um servo de seu próprio objeto de trabalho; recebe um objeto de trabalho exterior a ele, e não objetifica ele mesmo livremente; E recebe também os meios de subsistência por meio da produção desse tal objeto exterior. Dessa forma, seu próprio objeto por meio de seu próprio trabalho, exerce poder sobre ele porque determina suas condições de vida mais primárias.
A segunda forma, é o estranhamento do trabalhador de sua própria atividade produtiva. Tal relação, recorda aquela velha lamentação popular, que é quando estamos no final da semana, mais precisamente no domingo, e lembramos que o dia de amanhã é segunda-feira. O trabalhador não se afirma e não se reconhece por meio de sua própria produção, sente-se infeliz ao invés de sentir-se feliz em executá-la, o faz por obrigação, a fim de suprir suas necessidades biológicas mais básicas; sua própria atividade de trabalho não pertence a si, mas a outro. ‘’É a perda de si mesmo’’ Diz Marx.
‘’Chega-se por conseguinte, ao resultado de que o homem (trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc. e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se torna humano, e o humano, animal’’ (MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos, p.83)
A terceira forma da alienação, se dá pela alienação do indivíduo em relação ao gênero.
Ao que concerne ao gênero humano, Marx diz que a natureza é o seu corpo inorgânico; é da natureza que o mesmo retira seu meio de vida imediato, ela é seu objeto, matéria, e instrumento de sua atividade vital. A natureza faz parte do seu corpo, pois o homem é parte da natureza, e é necessário esse processo de atividade humana para lhe manter vivo. Tanto sua vida física quanto sua vida mental estão interconectadas com a natureza. O homem faz de sua atividade vital, ou seja, de seu trabalho, uma objetivação de sua vontade e sua consciência, distinguindo-se assim do animal, que realiza a sua atividade visando apenas a sua existência física. Com esse estranhamento de sua atividade vital, que se resume agora no trabalho alienado, o homem estranha-se de si mesmo e de sua própria função ativa enquanto ser genérico. A sua vida genérica transforma-se apenas em um meio para subsistir a sua vida individual, física. Com o trabalho alienado ou assalariado, não há mais o caráter consciente livre de sua atividade, tal atividade é substituída por uma força externa que determina sua produção, seu produto, sua relação com a natureza e consigo mesmo e, consequentemente, com outros homens.
A quarta e última forma de alienação, do indivíduo em relação ao seu ser social, ao outro homem.
Quando o homem se estranha de seu ser genérico é estranhado também pelo outro homem, assim como cada um deles estão estranhados na essência humana. Assim o trabalhador irá considerar o outro homem assim como ele próprio se considera. Se o trabalhador não se reconhece em suas produções, lhe é estranha a sua atividade, todas suas funções e produtos se voltam contra si, de forma poderosa e lhe impõe domínio, o dono dessas criações não pode ser ele, mas sim o outro homem, o outro homem fora o trabalhador.
‘’Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem’’ (MARX,K. Manuscritos Econômico-Filosóficos, p.86)
A relação do homem consigo mesmo, objetiva e efetiva, pressupõe a relação com o outro homem. Seu auto estranhamento, ou seja, o estranhamento de si e da natureza, envolve a relação que concede com outros homens. Assim sendo, a relação do trabalhador com o trabalho é a relação do outro estranho, a relação do capitalista com o trabalho.
Dessa forma, Marx concluirá que a propriedade privada é, não só o produto, mas também o meio do trabalho estranhado, exteriorizado. Ambos partilham de uma reciprocidade. Assim, o cerne da produção é o trabalho, e seu resultado é concedido diretamente à propriedade privada. O próprio salário equivale à propriedade privada nesse sentido, porque ele somente o é necessário para manter o mecanismo do estranhamento do trabalho, transformando o trabalho em seu servo.
‘’Em dois elementos que se condicionam mutuamente, ou que apenas são expressões distintas de uma e da mesma relação, o trabalho exteriorizado solucionou-se para nós, [ou seja], a apropriação aparece como estranhamento, como exteriorização, e a exteriorização como apropriação, o estranhamento como a verdadeira civilinização’’ (MARX, K. Manuscritos Econômico- Filosóficos, p.89)
O que Marx quer dizer com civilinização, é a ‘’naturalização’’, tornar-se humano, torna-se cidadão, por meio dos valores da classe dominante, a burguesia. Portanto, a emancipação da sociedade e o livramento da propriedade privada e do trabalho estranhado, se manifesta, segundo Marx, na política da emancipação dos trabalhadores, que, ao estabelecerem o ideal de emancipação da classe trabalhadora, estabelecem a emancipação da opressão de todo gênero humano, pois, todas as formas de opressão e servidão, estão relacionadas com a propriedade privada e o trabalho estranhado, consequentemente.
3. O suceder da história por meio do desenvolvimento das forças produtivas do Homem
‘’Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos’’ (MARX, K. 18 Brumário de Luis Bonaparte, P.X)
Como a própria citação direta de Marx anuncia, A história é um suceder de gerações onde cada geração se apropria dos materiais, das forças de produção e dos capitais da geração anterior, porém em condições totalmente alteradas, modificando com atividades diferentes as antigas condições. Ao ponto que o desenvolvimento dos modos de produção leva a uma expansão mundial e interconectada entre as nações, desenvolvimento que resulta em um mercado financeiro mundial, os acontecimentos locais, antes limitados por seu espaço, tornam-se acontecimentos histórico-mundiais por meio da interconexão. Essa interconexão, levada ao máximo na forma capitalista de produção, é necessária para uma consciência comunista global, onde a atuação recíproca dos homens em diferentes partes do mundo, agiriam contra o poder estranho que os domina.
Conforme as forças produtivas vão se desenvolvendo, diz Marx, existe uma fase em que tais desenvolvimentos causam mais malefícios do que benefícios para a sociedade como um todo, tais malefícios Marx diz se tratar da ‘’maquinária’’ e do ‘’dinheiro’’, malefícios que fazem com que uma classe (a classe dos trabalhadores) suportem o fardo do trabalho mais bruto enquanto a outra classe (a classe da burguesia) goza dos privilégios sustentados pelo proletariado. Tal classe trabalhadora emana a consciência e necessidade de uma revolução comunista, que pode surgir dela mesmo ou de outras classes (Burguesia, Pequena-Burguesia), graças a percepção desta classe e as dificuldades que ela enfrenta. Dessa forma, não é preciso necessariamente ser do nível mais baixo do proletariado para engajar-se na causa revolucionária, basta ter a consciência e importância dessa revolução.
O poder social de uma sociedade é estabelecido por meio do acúmulo de riqueza da burguesia, riqueza material que exerce um caráter prático-idealista de dominação da classe dominante sobre as classes inferiores. Tratarei com mais afinco sobre a ideologia da classe dominante no capítulo a seguir. Por enquanto, essa consideração é o suficiente para entender que as revoluções anteriores, para Marx, alteraram apenas os governantes, e não a forma de governo como tal, sua divisão de trabalho e de bens materiais. O que a revolução comunista propõe, afinal, é a superação (aufhebt) da dominação de uma classe sobre as demais. A classe do proletariado na revolução já não é mais uma classe, porque possui a expressão da dissolução de classes, nacionalidades etc.
4. Ideologia da Classe dominante e seu impacto na formação do Ser Social.
Para Marx, as ideias da classe dominante, são em cada época, as ideias dominantes; assim a classe que possui a força material mais elevada da sociedade, também possui a força espiritual dominante. As ideias são a expressão ideal, ideológica, das relações materiais apreendidas em ideias. Portanto, em uma sociedade onde a divisão de trabalho acontece em grande discrepância, também acontece a divisão do trabalho material e do trabalho espiritual. Marx diz que os historiadores de sua época se limitam a apontar que, em determinadas épocas, dominaram estas ou aquelas ideias, mas não consideram a relação das condições de produção e os produtores de cada época, desconsiderando assim, as condições mundiais e os indivíduos que fundamentam essas ideias, ou ideologia. As ideias que dominam, são cada vez mais abstratas e assumem cada vez mais a forma de universalidade. Assim, toda forma de governo que toma o poder, se vê na posição de apresentar seus interesses como o interesse comum de todos os membros da sociedade; é necessário por fim, apresentá-los como as únicas ideias racionais e universalmente válidas.
Marx diz que se deve separar as ideias dominantes da classe dominante, dominação que é expressa de forma material, e com isso reconhecer a dominação das ideias e de ilusões na história. Além disso, deve-se também colocar uma ordem nessa dominação das ideias, demonstrar a conexão mística entre as ideias dominantes, concebê-las como ‘’autodeterminações do conceito’’, e fomentar a ‘’autoconsciência’’ do indivíduo e, principalmente de quem Marx chama de ideólogos, como os pensadores, filósofos, que são concebidos como ‘’fabricantes da história’’.
Bibliografia:
MARX, K. ENGELS, F. A ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã e seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845–1846); supervisão editorial, Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. — São Paulo : Boitempo, 2007
MARX, K. Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Este artigo foi escrito por Felipe Cyrillo e publicado originalmente em Prensa.li.