A origem de Thanos: o eu de um “titã louco”
Introdução
Como exposto outrora, em resenha da obra, a história em quadrinho A ascensão de Thanos (2014) acompanha a figura de Thanos ao longo de sua formação como o famoso vilão da Marvel, conseguindo dar dramaticidade e profundidade ao personagem. Com isso, foge da ideia rasa de vilões “planos” e puramente sintéticos que são colocados para gerar um problema ao herói. Talvez esse ideal fraco de vilão em grande parte do público tenha ocorrido, ou sido impulsionado, pela indústria cultural aplicada à nona arte. Tal qual ocorreu ao cinema de heróis decorrente dessa mesma lógica.
Convém deixar claro que este artigo, comentar sobre o personagem para além da resenha, é um exercício de imaginação e criatividade, ou seja, não é como analisar e comentar manifestações reais de uma personalidade tal qual o protagonista representa, muito menos “diagnosticar” a figura de Thanos. Também não busca debater teorias acadêmicas ou aprofundar os debates já existentes, pois sendo uma história em quadrinhos, assim será tratada. Não digo que HQs não possam ou devem assumir tal responsabilidade social, pois se tratando de arte deve ter esse compromisso.
Enfim, para tal liberdade, assumo que a obra de arte é uma mensagem ambígua que contém muitos significados dentro de um só significante, a depender das possibilidades de interação e interpretação do público, similarmente como debatido por Umberto Eco, em Obra aberta (1991). Assim sendo, essa amplitude de interpretações ocorre ao se deslocar as perspectivas de cada um, a análise não diz respeito à suas características estéticas, mas de levantar pressupostos dos sentidos que os produtores têm sobre ela. Então, faço o exercício de imaginar e construir sentidos a partir de como foi criada e interpretada em determinado contexto.
O espaço social construído pelo autor
Comecemos pelo mundo construído pelos autores – tanto por Jim Starlin quanto por Jason Aaron –. O ponto de inflexão na história ocorre em Titã, a maior lua de Saturno, local natal de Thanos, pois é onde a história se inicia, decorre em grande parte na qual acontecem momentos chave para o todo social e também para o protagonista, e onde termina, após sua reflexão. Visualmente, logo nas primeiras páginas, vemos destroços e ossos espalhados pelo caminho do vilão, passando a ideia e a atmosfera mórbidas a qual está em relação com o indivíduo. É dito que Thanos “vem a este mundo gelado e silencioso caminha pelas cinzas da grande cidade onde nasceu. A utopia que ele deixou em ruínas” (AARON, 2014, p. 10). Então visita o túmulo de sua mãe, sendo a cena interrompida por um momento de muitos anos atrás, com uma cidade futurista, aparentemente bem estruturada e fluída de forma positiva.
Em sequência, muitas cenas ocorrem em laboratórios, causando contraste com cores frias em relação às cenas em que contém mais personagens que representam outro estado de espírito, como a escola ou um casal de namorados. É nos laboratórios que, normalmente, ocorrem a momentos de frieza e crueldade.
Então, no decorrer da obra, o cenário localiza o embate e a personalidade de quem está em cena, por exemplo: ainda criança visitando sua mãe num manicômio; a figura de Thanos na sala de capitão dando ordens aos subordinados; o debate com seu pai no laboratório do seu progenitor – que era cientista e teria criado essa face no filho –; ou a destruição e escombros ao beijar a morte e também ao compreender e decidir que fez suas decisões por si.
Relação com o eu e com os outros
Em um mundo ficcional em que habitam heróis, vilões, semideuses, deuses e entidades cósmicas, pode ser divertido tentar caracterizar e compreender a formação dos personagens, tanto que as histórias de origens após décadas de seu surgimento buscam atender essa curiosidade dos leitores – unida, senão estruturada, à intenção comercial das vendas, convém lembrar.
A figura de Thanos representa o retorno da violência e da morte para aquela sociedade que era considerada perfeita, ou seja, para os autores, era a representação de um estágio máximo de pacificação atingido pelo todo social. Em determinado momento é dito que: “nos séculos entre a descoberta da cidade dos eternos em Titã e o nascimento do gene-deviante Thanos, não houve um único homicídio”, também que após eras de paz, o conceito de assassinato deixara de existir (ibid., p. 41).
Sendo assim, trago – de forma muito simplificada – duas faces de interpretação do indivíduo, o arquétipo ao qual se encaixaria e o narcisismo do protagonista. Tendo Thanos o gene-deviante, isto é, a característica da divergência que se afasta, tanto fisicamente como socialmente às normas que regulam aquela sociedade em que vive, se relaciona e se comporta em sua composição genética, assume por si só a representação de que seria de sua natureza ser diferente daqueles com quem se relaciona.
Seria possível, de forma ficcional, categorizar Thanos em determinado arquétipo, como diria Jung, sendo caracterizado quanto à sua forma enquanto inconsciente, passando a manifestação do conteúdo ao se tornar consciente, ou seja, preenchida com o material da experiência consciente (JUNG, 2000, p. 90). Seria o arquétipo uma forma vazia, uma possibilidade de sua representação, herdando de um passado longínquo as formas, mas não o conteúdo. Então Thanos poderia ser, de forma cósmica, a representação de um arquétipo da morte, passando da forma ao preenchimento com conteúdo na sua jornada de se descobrir, inconsciente, à sua reflexão e conclusão, tornando-o consciente.
Passando ao narcisismo do protagonista, seguindo a teoria freudiana, colocaríamos Thanos num transporte da libido do mundo exterior para si, ocasionando uma superestimação do poder de seus desejos e de seus atos mentais, o que poderia ser atribuído à megalomania. Tendo a atração amorosa pela Morte, enquanto figura externa, coloca a libido no objeto, não equilibrando com a libido do eu. O que geraria uma parafrenia, isto é, um delírio crônico que acaba por influenciar a criação de elaborações mentais fantasiosas. Esse transtorno mental teria por uma das características a mania de grandeza e a expansiva, evidenciando seus delírios desconexos e superficialmente emotivos. Lembramos que apenas ele consegue ver a Morte e que, para ele, ela precisa dele para se alimentar.
Em suma, na tentativa de união das teorias sobre um personagem de quadrinhos, poderíamos supor que Thanos representaria o arquétipo da morte ao longo da sua vida, isto é, embora uma característica sua, também é um processo de longo prazo. Em meio a este desenrolar da história, ocorrem os embates internos, as disputas de libido e a diferentes e desiguais proporções de distribuição da mesma. A Morte, enquanto relacionamento externo é o momento do objeto, porém sendo apenas uma representação do eu para sua mente, também se torna o momento do eu. Unindo essa confusão de direcionamento ao mesmo tempo em que ele se assume como o arquétipo da morte, seria um amor direcionado para si. Próximo ao fim da história, seu pai diz: “você não ama a Morte. Nunca amou. Você só amava a si próprio” (AARON, 2014, p. 109). A libido investida no eu do personagem seria a libido narcísica, pois não haveria relações objetais, externas, derivando a autoestima e a parafrenia.
Enfim, reforço que o exercício proposto foi de entretenimento e de criatividade, porém não descarto estudos que realizem tal modo e temática como algumas áreas da filosofia da linguagem. Temos nos alongado nos aspectos psíquicos do protagonista – que estão em relação com o social, obviamente – ficaria a questão de como o meio social poderia mudar sua personalidade. Se sua mãe não tivesse tentado o matar quando bebê por ver a morte em seus olhos, o que o marcou e voltava recorrentemente em sonhos quando crescido (ibid., p. 19); se tomasse a atitude de dizer que viu amor (ibid., p.14-15); seu pai lhe desse atenção quando criança em vez de optar pelo trabalho (ibid., p. 18); se a “Morte” não o acompanhasse desde a infância nos embates de seu meio social com as questões psicológicas; haveria ocorrido de outra maneira?
Obviamente que dentro do mercado do universo Marvel já estabelecido isso não poderia ocorrer, pois ao contar a sua origem e ascensão, a editora buscava atrair público e construir terreno para outras mídias, bem como aprofundar as curiosidades e os interesses do público com a figura de Thanos, um dos principais vilões desse universo estruturado há décadas. Fica, de toda forma, o convite à leitura da obra e para diversas interpretações.
Referências bibliográficas
AARON, Jason. A ascensão de Thanos. Barueri, SP: Panini Books, Roteiro Jason Aaron/ arte Simone Bianchi com Riccardo Pieruccini; 2014.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo, SP: Editora Perspectiva S.A., 8ª ed., 1991.
FREUD, Sigmund. INTRODUCCIÓN AL NARCISISMO. 1914. Disponível em: Librodot.com. Acesso em: 28 de nov. de 2021.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000.
Este artigo foi escrito por Maurício Brugnaro Júnior e publicado originalmente em Prensa.li.