A Pandemia e os Traumas
Os traumas relacionados a experiências na infância é um tema que precisa estar na agenda das pesquisas e das políticas públicas que estão em desenvolvimento neste contexto de pandemia da Covid-19. Para evidenciar a importância dessa temática na agenda contemporânea, este texto trata de apontar as situações traumáticas vivenciadas na infância como problemas emergentes a serem tratados pela saúde pública.
A etimologia da palavra trauma nos remonta à antiguidade grega, vem de traûma (τραῦμα), que em sua significância quer dizer: ferimento, traumatismo, violência, choque emocional. Na psicologia, trauma é a manutenção de uma resposta constante de alerta, sem um perigo iminente que a justifique, podendo acarretar tensões musculares, insônias, crises de choro, de pânico e de ansiedade. Na psicanálise, Freud entende o conceito de trauma no plano psíquico, afirmando que o trauma é uma violação, que de tão violenta, consegue transpassar o espaço do ego do sujeito podendo gerar situações de perturbação, como as neuroses.
Na origem primeva das sociedades é comum encontrar relatos de fatos traumáticos contra crianças, em civilizações antigas, elas eram entregues como sacrifícios religiosos para deuses mitológicos.
Na China ancestral, existia uma medida de controle populacional que consistia em entregar o quarto filho para animais selvagens a fim de que fossem devorados, e, até o século XVII, as crianças eram tratadas como adultos inferiores e submetidas a situações deploráveis de serviços braçais, que chegavam até 15 horas diárias de trabalho. A atitude de transgredir a integridade física ou emocional de outrem é um ato pertencente a fatores socioculturais que vão desde o despreparo dos pais ao empobrecimento da população.
Após um passado desesperançoso, a ideia de infância alterou-se substancialmente nas últimas décadas. Como? Com a criação de códigos de proteção à infância e a adolescência, que vão desde a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quando expostos a situações de risco, de correr ou morrer, o nosso corpo realiza um conjunto de alterações e respostas sensoriais primitivas para a sobrevivência que em um ciclo constante de repetições, poderão desenvolver alterações no funcionamento psicossomático.
É preciso entender os efeitos destas experiências em um nível social, destrinchando em riscos para a saúde e custos financeiros dos traumas de infância para os sistemas públicos de saúde. Consideremos adversidade como algo desfavorável e destarte, estando relacionado com infelicidade. A exposição às adversidades pode efetivamente interferir no desenvolvimento humano.
(Imagem: Criança triste de costas via iStock)
Experiências Adversas na Infância (EAIs) são situações traumáticas que após constantes repetições, são cristalizadas em nosso corpo. Quando expostos a situações de risco, de correr ou morrer, o nosso corpo realiza um conjunto de alterações e respostas sensoriais primitivas para a sobrevivência que em um ciclo constante de repetições, poderão desenvolver alterações no funcionamento psicossomático.
O estudo que inicia esta teoria foi consolidado na década de 90 por um grupo de pesquisa norte americano. Silva e Maia (2008) explicam que:
[...] surgiu associado a um programa de perda de peso, em que se verificou uma elevada taxa de abandono bem como uma grande incapacidade de perda e manutenção do peso. Os dados desta investigação mostraram, de forma surpreendente, que as experiências adversas durante a infância e a adolescência eram muito frequentes nesta população. Este facto levou os autores a concluírem que a intervenção não estava voltada para as reais causas da obesidade e iniciou o interesse do grupo pela compreensão do impacto que as experiências de adversidade vivida na infância têm na idade adulta. Os investigadores verificaram que a prevalência destas experiências na população geral também era inesperadamente elevada (SILVA; MAIA, 2008, p.1-2).
A partir deste grupo, inicia-se uma sequência de trabalhos que visam relacionar as EAIs com o desenvolvimento humano, entendendo o que definimos como relação criança-trauma: um efeito ocorrido durante os primeiros 12 anos de vida. É preciso entender os efeitos destas experiências em um nível social, destrinchando em riscos para a saúde e custos financeiros dos traumas de infância para os sistemas públicos de saúde. A base deste estudo norte americano foi construída a partir de um questionário que é utilizado de diversas formas atualmente. O questionário tratou-se de um autorrelato para adultos, avaliando a quantidade de EAIs experienciadas por estes indivíduos, sendo elas: abuso emocional, abuso físico, abuso sexual, exposição à violência doméstica, abuso de substâncias no ambiente familiar, divórcio ou separação parental, prisão de um membro da família, doença mental ou suicídio, negligência física e negligência emocional.
Para explicar com maior clareza as EAIs, elucidaremos uma situação hipotética conforme a seguir:
1.º) Pense em uma história de uma pessoa X que teve experiências adversas na infância. Estas experiências contribuiriam para a personalidade deste indivíduo, reduzindo a qualidade e a expectativa de vida. Imagine este sujeito crescendo em um ambiente familiar onde seus pais bebiam e brigavam muito, e ambos, em lapsos agressivos espancavam o filho. A criança acostuma a ter medo de seus agressores, vive em um constante modo sensorial defensivo. Seu pai tem um emprego desgastante e vive chorando. A mãe é depressiva e toma remédios para ajudar a lidar com esta doença. Em meio a álcool, cigarros e remédios, não sobra dinheiro para brinquedos, roupas ou comida.
2.º) O biológico da nossa criança hipotética está se acostumando ao medo, e os hormônios liberados por seu corpo em desenvolvimento, deixam-na em uma situação de estresse constante, pois o cérebro não adquire competências necessárias para lidar com os sentimentos e o corpo não consegue completar ciclos de sono e de relaxamento com eficácia. Este ciclo deficitário aumenta a possibilidade da nossa pessoa hipotética desenvolver câncer ou alguma doença cardíaca em sua fase adulta, os danos serão cristalizados e possivelmente acompanharão o sujeito por toda a vida.
3.º) Imaginemos a sua adolescência, um jovem que bebe, fuma e todos ao seu redor deixam claro para ele, que ele está descontrolado, entretanto, talvez ele não esteja. Será que a situação em que ele está é uma espécie de resposta psicossomática as EAIs? Este adolescente é uma pessoa assustada e com uma raiva constante, após os professores dizerem que a escola não é espaço para ele, desiste de estudar. Longe da escola, inicia um relacionamento (abusivo) com sua namorada, de 16 anos que sem muitas orientações, acaba engravidando dele, assim como ocorreu com a mãe da nossa pessoa X.
Como estaria este indivíduo na vida adulta? Imaginemos. Ele tem diabetes e é viciado em cigarros e bebidas, tem dificuldades para conseguir um emprego estável e vive agredindo os filhos e a esposa que tem depressão e toma antidepressivos. A vida desta pessoa X, possivelmente pode estar relacionada com as EAIs vivenciadas. E se pudéssemos intervir para que isto não acontecesse? Pensemos em um modelo de intervenção, do tipo a seguir.
Acreditando que um acompanhamento psicossocial na infância pode fazer uma enorme diferença na vida de uma pessoa, quando esta pessoa hipotética nasce, as enfermeiras do hospital público percebem que a mãe não está em uma situação emocional desejável. Elas iniciam uma intervenção, conversando e orientando sobre a maternidade precoce. O hospital indica a mãe para um centro de apoio social e com um pouco mais de ajuda, ela consegue lidar bem com a situação. Em casa, a mesma briga constantemente com o marido e em uma destas brigas, a polícia chega e também realiza uma intervenção empática, conversa com os pais e com a criança e na sequência, aciona o poder jurídico responsável pela situação, que indica uma ajuda social e terapêutica para a família. Os gritos diminuem, as agressões param e os pais passam a ser mais presentes. O garoto tem problemas na escola e um professor realiza uma intervenção psicopedagógica entendendo o que a criança passa em casa. Ele a apoia e a ajuda a entender os seus sentimentos. Na fase adulta, este sujeito hipotético constitui um matrimônio, tem filhos e está empregado. Com estas intervenções psicossociais ele tenderia a não repetir com sua esposa e filhos o mesmo ciclo de abusos que seus pais cometiam.
Entendendo todas estas situações hipotéticas evidenciadas neste texto, se tratássemos as EAIs como saúde pública, as crianças poderiam ter uma vida adulta mais saudável. Menos experiências adversas significa agir de modo preventivo, colhendo em um futuro próximo menos adultos desenvolvendo doenças graves e usando drogas, o que impacta também em menos gastos orçamentários com saúde e segurança. É preciso que a sociedade esteja atenta quanto as EAIs, devendo haver um modelo de intervenção multiprofissional para atender as crianças. Para quem já sofreu EAIs e encontra-se em sua fase adulta, devemos ressignificar estas experimentações de modo que também haja investimentos públicos para uma melhor orientação psicossocial a estas pessoas.
(Imagem: Criança com a mão no rosto via iStock)
Relacionando EAIs com a pandemia da Covid-19
Em momentos pandêmicos é um grande desafio a medição de possíveis riscos biológicos decorrentes desta situação, de certo, é mais raro um olhar que reflita e aja sobre os riscos emocionais. Ao decorrer de uma pandemia, o número de indivíduos acometidos por uma saúde mental fragilizada, tende a ser maior que o número de infectados pela própria infecção.
Durante crises de saúde pública, as dificuldades são variadas, entre elas, podemos citar os impactos: econômico, político e psicossocial. No final de 2019, na cidade de Wuhan, na China, foi identificado um novo integrante da família do Coronavírus, o Covid-19, um vírus com um potencial elevado de contágio e, por isto, sua transmissão foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um surto pandêmico. Por ser um agente desconhecido, o mundo da ciência iniciou uma batalha constante para impedir um desastre de saúde global.
Como resposta à pandemia da Covid-19, instituições adotaram o distanciamento social e o fechamento de alguns espaços físicos, um deles: a escola, espaço fundamental para o desenvolvimento infantil. Nela, as crianças passam boa parte de suas infâncias e constroem aprendizado para um bom funcionamento das relações sociais.
Os pais e mães de crianças e adolescentes com todas as limitações que já possuem, ficaram sobrecarregados com a necessidade de se readequarem a esta nova realidade, sem o apoio das escolas. As mudanças vivenciadas no período pandêmico da Covid-19, evidenciaram um aumento da desigualdade social, da negligência, do abandono e da solidão.
Há estudos que tratam a distância dos conceitos linguísticos de solidão e solitude, considerando solitude como estado de reclusão em que o indivíduo não está em sofrimento e solidão como uma angústia relacionada à dor de sentir-se sozinho. Reconhecemos que solidão é um caso de saúde pública, o Reino Unido trata a situação de maneira tão séria que existe um Ministério da Solidão.
De fato, a pandemia da Covid-19 e o distanciamento social imposto por ela, colocam-nos a refletir sobre o estado de solidão infantil, onde crianças, mesmo acompanhadas por pais ou outros familiares, sentem-se sozinhas e negligenciadas, potencializando a cristalização de traumas vivenciados.
Como intervir para amenizar o aumento das EAIs neste momento que já vivenciamos 2 anos de pandemia? De início podemos afirmar que é necessário um trabalho multiprofissional e um olhar sensível para a relação criança-trauma. Também, é preciso destacar cinco intervenções fundamentais, como:
a) o estabelecimento de uma nova rotina para as crianças. Antes da pandemia, entendemos que a criança possuía uma rotina definida, e que sua maior concentração deveria ser a escola. Por isto é necessário construir uma rotina que tenha horários para refeições, para o lazer e para outros afazeres necessários. É preciso entender que a estipulação e efetivação de uma rotina não deverá ser um processo engessado, possibilitando uma construção e revisão contínua;
b) construção de atividades familiares coletivas e atividades de lazer;
c) educação clara e constante sobre o momento pandêmico ocasionado pela Covid-19 e os cuidados que devem ser tomados, como lavar as mãos, a importância de uso de máscaras, dentre outros, sempre utilizando uma abordagem tranquilizadora;
d) controlar o fluxo de informações em que as crianças estão sendo expostas, pois, elas podem ser processadas de maneiras traumáticas;
e) organização do uso de aparelhos eletrônicos, pois, é preciso limitar de maneira consciente o uso de celulares, tablets e outros aparelhos digitais, seguindo recomendações necessárias para a faixa etária de cada criança. Além disso, é fundamental que as famílias realizem uma supervisão constante das atividades digitais em que as crianças estão inseridas, a fim de evitar possíveis exposições traumáticas que a internet viabiliza.
Acesse o artigo científico que fundamenta este texto, aqui: https://revista.uemg.br/sulear/article/view/5004
Este artigo foi escrito por Weslley de Morais e publicado originalmente em Prensa.li.