A saga do Apertador de Parafusos
A maior verdade existente nas obras-primas, é que quanto mais envelhecem, mais permanecem atuais. Não é diferente com “Tempos Modernos” de 1936, o quinto longa-metragem produzido, escrito, dirigido e estrelado por Charles Chaplin.
Em tempos em que leis trabalhistas são revogadas e decretos eufemizam a própria ideia de escravidão, um filme de mais de oitenta anos, ainda é capaz de nos mostrar, o quanto nossas relações com o mercado de trabalho são, desde sempre conflituosas e que por mais que as coisas mudem, no fundo, continuarão sendo as mesmas para a maioria daqueles que precisam trabalhar para sobreviver.
O plot é simples. Um operário de uma linha de montagem, é levado à loucura pela "monotonia frenética" e repetitiva do seu trabalho. Após um longo período em um sanatório ele fica curado de sua crise nervosa, mas desempregado.
Ele deixa o hospital para começar sua nova vida, mas dá de cara com as consequências de uma crise econômica generalizada e equivocadamente é preso como um agitador comunista, que liderava uma marcha de operários em protesto.
Se me pedissem uma lista de coisas que eu levaria para uma ilha deserta, certamente este filme figuraria nela. Os motivos são tantos, que eu não saberia enumerar.
Se eu pudesse escolher um, talvez seja o fato de que ele me fez gostar verdadeiramente do cinema não apenas como peça de entretenimento, me fez entender do valor estético de um filme e que uma obra cinematográfica poderia ter um peso artístico tal qual a literatura ou qualquer outra manifestação artística.
Neste viés, posso dizer que foi com os filmes mudos e preto e branco de Chaplin que eu descobri o cinema como um propagador de ideias. Em 1929, o cinema já tinha condições técnicas para o registro de som na película e uma profusão de filmes falados veio em seguida, a começar por "Cantor de Jazz", filme em que Al Jolson faz seu famoso para lá de controverso black face. Pioneiro do filme mudo industrial de Hollywood, Chaplin achou que o cinema falado seria um modismo passageiro.
As produções da década seguinte contrariam seu vaticínio, mas ainda assim, não se rendeu. Em 1932 lançou “Luzes da Cidade'', um filme mudo, mas com o uso de efeitos sonoros em determinadas cenas. Ainda sobre essa decisão, ele afirmava que fazer com que o seu personagem Carlitos falasse, simplesmente iria descaracterizá-lo.
Três anos depois, Tempos Modernos chegaria aos cinemas não apenas como um ato de resistência, mas como uma escolha estética transgressora onde a interpretação exagerada e expressiva já em desuso, dividia espaço com o som.
De fato, há cenas faladas como a do chefe na fábrica ou da impagável sequência onde Carlitos canta numa língua inventada, mas o som é apenas um acessório onde a linguagem visual nos presenteia com momentos dos mais emblemáticos da História da sétima arte.
Historicamente, temos os EUA vivendo ainda seus momentos dramáticos da Grande Depressão, o desemprego massivo, as jornadas desumanas de trabalho, o surgimento nada tranquilo do sindicalismo. O filme abre com um tema musical bombástico onde cenas da balbúrdia da cidade são sobrepostas à de porcos indo para um matadouro, finalmente mostrando que nada tinha de diferente da entrada dos operários numa fábrica.
Lá dentro, pressão por produtividade enlouquecedora. Da coisificação ou mecanização do humano. Rimos de maneira desconfortável da cena em que Chaplin aperta uma série de parafusos em sequência, quando se torna cobaia numa máquina inventada para que o operário se alimente em menos tempo sem comprometer a produtividade ou mesmo na clássica sequência em que ele desliza nas engrenagens do maquinário.
Não sabemos exatamente o que se produz naquela fábrica, mas em dado momento só queremos sair dali e acaba sendo um alívio quando Carlitos praticamente enlouquece de tanto repetir movimentos para apertar parafusos e vai parar num hospício.
A partir daí temos outra decisão estética importante. Salvo algum engano, Chaplin nunca deu maiores explicações sobre quem era o seu famoso personagem. De onde vinha, como foi parar na indigência. Aquele chapéu coco, terno puído e a bengala poderiam nos permitir supor que ele tivera um lar, uma vida, fosse um cidadão respeitável.
É quando fica desempregado, que nasce o personagem do vagabundo, pois antes ele era um trabalhador e quando sai do manicômio é mais um desempregado que passa a vagar pelas ruas. Chaplin talvez não tenha pensado nisto deliberadamente, mas pode-se dizer que Tempos Modernos poderia ser o precursor da ideia de prequel que é o termo usado no cinema para apresentar o passado de um personagem ou universo recorrente.
Pouco antes da primeira metade do filme, somos apresentados à órfã que se torna a companheira de Chaplin no filme, interpretada pela bela atriz Paulette Goddard que vivia maritalmente com Charlie na vida real.
É impressionante como são perfeitos em cena. Chaplin sempre soube escolher suas partners em outros filmes em romances platônicos que sempre acabam mal. Aqui temos uma relação de carinho, amizade, parceria, ainda que o fim possa sugerir uma espécie de final feliz ao casal, acho que a marca principal da relação é a ternura.
Com temas tão duros, onde os dois precisam correr atrás de oportunidades, sobreviver e até mesmo se permitirem sonhar dentro de uma realidade tão acachapante, é o humor por vezes ferino, por vezes doce e ingênuo, que nos leva a reflexão sobre o real objetivo de enfrentarmos tantos percalços.
Todas as cenas emblemáticas do filme podem ser aplicadas ao momento tão flagrante que vivemos. A cena da repressão policial durante uma passeata onde Carlitos ingenuamente apanha uma bandeira vermelha caída de um caminhão poderia evidenciar os tempos de intolerância política de nossos dias.
A cena em que ele aperta parafusos, além do óbvio, também demonstra como cada vez vamos ficando rasos especialistas num tema só na vida, seja na nossa educação que nos prepara apenas para exames vestibulares e não para a humanidade, a vida, ou como escolhemos nos confinar em bolhas sociais para não ter que admitir o diferente.
O filme chega ao fim de maneira um tanto quanto triste, mas embalada ao som da canção "Smile" também de Chaplin, que nos diz que devemos sorrir não importa o que aconteça. Algo muito difícil, mas que aqui não soa clichê, nem como tema de livro de autoajuda.
Tempos Modernos é uma grande inflexão, contraponto ao que a dita vida moderna havia se tornado há quase cem anos, mas que seguiu longe de ser capturado pelo anacronismo. Ainda seguimos lutando pela sobrevivência e as coisas para a maioria de nós não ficou melhor.
Ainda corremos atrás do tempo, por um transporte melhor, por moradia melhor, por alimentação melhor. Um filme mudo, feito quando o cinema era falado, poderia ser considerado anacrônico naquele tempo, mas foi além, se tornou extemporâneo, atemporal. Um filme que infelizmente, ainda é muito, muito moderno.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.