A sociedade doente
Meses atrás, escrevi um artigo para o portal Prensa, considerando que nossa sociedade estava gravemente doente.
Justifiquei a teoria devido ao comportamento de grande parte da população, acometida por uma tremenda tensão pré-eleitoral. Naqueles dias, não importava ser simpatizante de um ou outro candidato, ninguém dormia direito. Ninguém pensava direito.
Imaginei que as coisas entrassem em um certo relaxamento depois do pleito. Isso serviu para provar minha imensa ingenuidade e insuspeita boa fé na humanidade. Errei, feio e rude.
O coro dos descontentes já era esperado. A infame polarização deixava evidente. Mas a paralisação "espontânea" de boa parte da malha viária brasileira, insuflada e aquecida por centenas de mensagens nos grupos de zap, dando voz às mais loucas teorias da conspiração, foi além dos limites. Envolvia generais fictícios, Lady Gaga e, infelizmente, revelou brasileiros com propensões nazi-fascistas.
Definir o inconcebível
Para quem nunca ouviu falar, o que é bastante improvável, explico: o fascismo foi um movimento político nascido na Europa após a Primeira Guerra Mundial. Suas características mais marcantes são um Estado forte, voltado para si, sem depender de outros; o melhor tipo de relacionamento internacional almejado por fascistas é subjugar outra nação ou povo que julguem mais fraco.
Aí entram outras pérolas como a busca por um ideal genético hegemônico e puro (os conceitos de eugenia estavam em moda naquela época), culto a um líder, forte manipulação popular e por aí vai. Claro, com generosas doses de discursos de ódio voltados a quem consideram inferiores, seja por orientação sexual, religiosa ou política. Fascistas precisam o tempo todo de um inimigo. O termo não está errado. Não é “adversário”. É “inimigo” mesmo.
Em geral sua forma preferida de diálogo é a violência. Todo esse movimento culminou na Segunda Guerra Mundial e na hedionda eliminação de milhões de pessoas cujo único senão era ser diferente de quem estava no poder.
Abro parêntese para lembrar que este tipo de atitude não é exclusividade de movimentos de direita. A esquerda também teve seus demônios particulares. Mas antes que perguntem qualquer coisa, não, não existe fascismo de esquerda, como recentemente tentaram empurrar goela abaixo do povo.
Nunca mais
A Segunda Guerra acabou há muito tempo, meados do século vinte. Responsáveis foram julgados e severamente punidos. Houve um enorme esforço internacional de conscientização e informação, para desmobilizar qualquer possibilidade que este monstro viesse a renascer. Estávamos livres da ameaça nazista ou fascista. Certo?
Bem, era o que pensávamos. Já nos anos 1960 e 1970, na esteira de movimentos de contracultura, células de inspiração fascistoide, misturadas a iniciativas de música e moda, começaram a proliferar na Europa. Não é necessário dizer, rapidamente dispersos pelas autoridades.
Mas tal qual erva daninha mal erradicada, continuaram a surgir lá e cá. O tempo foi passando e uma linha tênue, alimentada com discursos de ódio, racismo e negacionismo histórico, juntou na mesma laia movimentos como o Reichsbürger alemão e os Carecas do ABC.
O brasileiro, porém, têm uma tendência crônica de não se levar muito a sério, para o bem e para o mal. Apesar de reprimidos rapidamente pela força da lei, muita mão na cabeça se passou, sobretudo mais recentemente.
Então, não é de se estranhar, mas é de assustar, que vejamos cenas como a de brasileiros, brasileiríssimos, fazendo saudações inegavelmente nazistas, marchando de forma ridícula com bandeiras, odiando e promovendo um culto a mitos, em manifestações que oscilam entre o patético e o grotesco.
Desfile de absurdos
Como as ocorridas em Santa Catarina, que mereceram o achincalhe justíssimo de países como Israel e Alemanha, e o repúdio de toda a comunidade internacional. Mostram pessoas que não conhecem o mínimo de História, tampouco demonstram a menor empatia.
Sobretudo, ao questionar o resultado das urnas, não manifestam o menor apreço pela liberdade e pela democracia, que tanto dizem defender. Democracia que via de regra é a primeira coisa a cair por terra quando as regras do jogo são rasgadas.
Vivemos um momento complicado, onde instituições que permaneceram sem ser corrompidas são ameaçadas e lutam para manter o país “dentro das quatro linhas”.
Cabe aqui um mea culpa. Nós, da Imprensa responsável, ao divulgar, horrorizados o que vemos nas ruas, ampliamos o poder daquelas imagens absurdas, despertando dentro de fascistas enrustidos seu enorme desejo de tomar as ruas. Movimento facilitado pela conivência de parte das forças da lei.
No início, parecia apenas um grupo de lunáticos, com um desejo descabido de aparecer, utilizando os meios mais equivocados possíveis. Gente que não deveria e nem poderia ser levada a sério, em pouco tempo despejados na inevitável lata de lixo da História.
A nova cara do mal
O problema é que a tampa da lixeira ficou entreaberta. Aquele discurso sedutor, fermentado pelas piores intenções, escorreu lata afora, ganhou ruas e corrompeu corações e mentes.
Um fascismo verde e amarelo, um nazismo cirandeiro, rapidamente saiu das trevas e agora é uma realidade a ser encarada e combatida. Infelizmente, com muito mais dificuldade do que se poderia imaginar.
A estética nazi-fascista brasileira não fica evidente apenas nos protestos: cartazes com inspiração clara, quase ridícula, em materiais de propaganda da Alemanha dos anos 1930, insuflando a população “conservadora”.
Vivo em uma cidade pequena do interior. Nos dias entre o primeiro e segundo turno das Eleições, vi pais orgulhosos, vestidos com a camisa da Seleção, exibir seus filhos, igualmente uniformizados, como um projeto de futuros fascistas. Não havia nenhuma alusão à Copa do Mundo ali. Nem tampouco patriotismo. Sombras auriverdes das trevas da Europa da primeira metade do século vinte.
Assim como também não era patriotismo alguns hipermercados da região, a título de comemorar a “semana da pátria”, ostentar a nossa pobre e surrada bandeira nacional numa estética simular à vista em comemorações na Berlim da ascensão nazista. Tétrico.
A sem-cerimônia de tantos “patriotas”, assim como foram patriotas certos grupos italianos e alemães daquele período, chegou a um nível tão pesado que sequer disfarçam suas intenções nos materiais de propaganda criados para alavancar seus ideais.
Fascismo para todos os gostos
Não precisei relembrar os conceitos de semiótica dos tempos da faculdade. As coisas são claras e cristalinas. Desde 2018, o lema desta nova direita é bastante escancarado: “Deus, Pátria, Família”. Bonito, soa como um slogan conservador, então que mal haveria?
Não por coincidência, é o mesmo usado pelos nazistas da Associação Brazil Livre (e aqui não é nenhum eufemismo) em 1938, numa proposta ao Ministro Oswaldo Aranha, sugerindo “restricções” à comunidade judaica brasileira, incluindo descendentes e ascendentes. Talvez nem todos saibam, mas propostas muito similares terminaram mal na Europa daqueles dias. Muito mal.
E a “coincidência” não pára por aí. Era o mesmíssimo slogan usado por pelos Integralistas liderados pelo populista Plínio Salgado. E veja só, o Integralismo era uma versão verde e amarela do nazi-fascismo, que não foi mais longe porque o Brasil sabiamente mudou de lado na Segunda Guerra. As similaridades eram tão grandes que até o sieg heil, a tradicional saudação nazista, tinha sua versão brazuca: anauê. No lugar da suástica, a letra grega sigma.
Ainda acha que é só coincidência? Por um detalhe, o lema dos fascistas italianos era “Dio, Patria, Famiglia”. Normalmente, com a estampa sorridente do ditador Benito Mussolini, que adorava uma motociata, e não era bem um amor de pessoa.
Outro slogan muito usado por essa turminha trajando o uniforme da Seleção como se não houvesse amanhã, é o famoso “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. Famoso principalmente por ser usado à exaustão pelo primeiro escalão do governo.
Diz-se por aí que esse seria o lema do grupo de paraquedistas do qual certo presidente de um certo país sul-americano fez parte. Não caia nessa: “Brasil acima de tudo” é a tradução literal do slogan “Deutschland Über Alles”. No belo e difícil idioma de Goethe, significa “Alemanha acima de tudo”.
Por sinal, lema usado por um certo ditador dos anos 1930-1940 de um certo país europeu. Sujeito célebre por usar um bigodinho esquisito e fazer discursos ainda mais esquisitos. Vamos combinar que esta não é uma boa referência.
O “Deus acima de todos” é um acréscimo para contentar forças conservadoras e sobretudo religiosas de sua base de apoio. Aliás, falsos religiosos costumam ser usados com frequência para perpetrar movimentos ditatoriais.
E já que falamos em referências, encontrei vagando pelos grupos de Telegram, WhatsApp e outras redes sociais, um manifesto conclamando meus conterrâneos: “povo sulista, liberte-se”, era o título ensinando um texto repleto de ódio e preconceito. Seria inconcebível, ainda que nem houvesse “importado” toda a referência gráfica e estética de um panfleto no mesmo tom dramático que circulou em alemão, em 1931. Bizarro, infeliz e patético.
Uma coleção grotesca
Nessa toada, tivemos um podcaster defendendo a existência de um partido nazista no país; um comentarista fazendo o sieg heil no vídeo de uma emissora de rádio “que virou TV”; pessoas de escalões variados do governo fazendo sinais escondidos e mesmo a cara de pau de elementos do primeiro escalão do executivo nacional bebendo leite em uma live, juntinhos. O que poderia ser apenas uma cena cândida escondia uma saudação de supremacistas brancos, o que nada mais é do que outro modo de definir fascistas.
Acabou? Claro que não!
Pessoas ligadas a estes movimentos infames, logo após as Eleições, iniciaram boicotes a quem pensasse de modo diferente. Nesta "brincadeira" afetaram inclusive as doações para a APAE de Ijuí, Rio Grande do Sul, o que denota antes de mais nada uma tremenda falta de Humanidade.
Em Santa Catarina, um professor de História – atente para o detalhe, de História – publicou em grupos de WhatsApp que Hitler “tinha razão” em suas teorias sobre povos superiores e inferiores. Foi enfático ao dizer que gostaria de ser um dos responsáveis por "expelir o gás” em câmaras de extermínio. Para nordestinos. Arrematou com “Hitler foi melhor que Jesus, pelo menos expurgou o que não prestava”.
Tal professor, da cidade de Imbituba, próxima a Laguna, no Sul do Estado, foi afastado por 60 dias, enquanto correm investigações.
Fatos similares ocorreram em colégios particulares de ensino médio, em Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul. Alunos reunidos no pátio, fazendo impensáveis saudações nazistas, marchando, bradando palavras de ordem contra nordestinos, a “raça inferior”, segundo seu turvo ponto de vista.
Alunos que deveriam ser instruídos a comportamentos tolerantes, conciliadores e inteligentes. Tais colégios parecem incubadoras de uma versão mal-feita das famosas “juventudes hitleristas”. Celeiro de ignorantes proto-ditadores, que se julgam superiores apenas por serem “bem-nascidos”. Vindos de classes abastadas. Ou abestadas, como diria o Tiririca.
“Eu tenho medo”
A loucura não parou: uma célebre atriz brasileira, que ocupou a cadeira de Secretária de Cultura por um curtíssimo espaço de tempo, substituindo outro que ostentava referências de seu ídolo nazista em seu escritório, inclusive plagiando um infame discurso, sugeriu aos apoiadores do atual governo que marcassem as portas de comércios que apoiassem o novo presidente eleito, com a estrela que é o símbolo de seu partido, a fim de boicotá-los. Nada mais sutil: era exatamente assim, só que com a Estrela de Davi, que os nazistas marcaram os comerciantes judeus.
Em Caruaru, agreste pernambucano, um centro de formação do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) foi invadido e depredado, com diversas suásticas (mal desenhadas) e a palavra “mito” pichadas no que restou de suas instalações. Nada mais evidente.
Há mais referências visuais que precisam apenas de um olhar atento para evidenciá-las. Não me cabe citar o nome, mas quando houver chance, repare bem no visual de um certo diretor da Polícia Rodoviária Federal, acusado entre outras coisas pela conivência com os movimentos golpistas que travaram (e travam) rodovias.
Mesmo em momentos de calor, o sujeito insiste em usar a gola de seu casaco estranhamente fechada. Dê um Google, nem faça força. Depois procure fotos de oficiais da temida SS, a Polícia de Estado nazista. Nosso amigo brasileiro é um fac-símile medonho.
Ficamos assim?
Lá atrás, assinalei naquele artigo sobre o podcaster com nome de bicicleta, que fascismo (ou nazismo) é crime. Sua apologia deve ser punida com severidade.
Atos destes não são brincadeira. Resta saber se quem tem o poder real de combatê-los irá tomar providências ou ficará observando placidamente. O resultado dessa inércia tende a ser trágico.
E você, o que acha? É exagero da minha parte? Concorda? Discorda?
As cartas estão na mesa. Ao menos enquanto temos nossa tão cara liberdade.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.