A Trégua de Natal: uma mensagem de esperança
Estátua em Liverpool relembrando a "trégua de Natal" (Foto: John B Hewitt / Shutterstock.com)
A música All Together Now, da banda The Farm, retrata a Trégua de Natal ocorrida em Dezembro de 1914 nas trincheiras da Bélgica, na Primeira Guerra Mundial, onde soldados alemães e ingleses saíram dos dois lados das trincheiras, abandonaram suas armas, cantaram juntos, trocaram presentes e se confraternizaram na noite de Natal.
All Togheter Now
Se você curtiu sua adolescência ou juventude nos anos 90, com certeza você ouviu, e até mesmo pode ter dançado, a música All Togheter Now, da banda The Farm. Mas, a pergunta que fica é: você tem noção do que a música fala? Da profundida que ela tem? Da mensagem que ela passa?
Martyn Goodacre/Getty Images
A banda The Farm surgiu em 1983 na cidade de Liverpool, na Inglaterra, e fez um relativo sucesso dentro do país. Mas, a música que a tornou conhecida fora da terra da Rainha foi All Togheter Now, sucesso que estourou em 1990.
A música esteve na lista das 10 mais tocadas no Reino Unido e nos Estados Unidos, chegando ao Brasil no mesmo ano com grande sucesso não apenas nas rádios, mas, em muitas danceterias.
Os embalos de sábado a noite traziam uma mensagem linda que poucas pessoas perceberam, uma mensagem sobre paz e esperança através de um dos fatos mais bonitos e marcantes da I Guerra Mundial que ficou conhecido como “a trégua de Natal”. Mas, o que foi essa trégua?
O início da Guerra
Illustrated London News
Em 1914 dá-se início a I Guerra Mundial, o primeiro grande conflito armado do Século XX e que devastou, principalmente, a Europa. O estopim para o início da guerra foi o assassinato do arquiduque do Império Austro-Húngaro, Francisco Ferdinando, e sua esposa. Ambos estavam desfilando em um carro aberto pelas ruas da cidade de Saravejo, na Bósnia, território que era dominado pelo Império e que possuía várias frentes de libertação buscando a retomada da independência do país.
Um dos grupos era conhecido como “Mão Negra” e um membro desse grupo, Gavrilo Princip, foi o responsável pelos disparos que cometeram o assassinato. O Império Austro-Húngaro imediatamente declarou guerra contra a Sérvia. A Sérvia, aliada da Rússia, pediu apoio militar aos russos que entraram na guerra. O Império Austro-Húngaro, aliado da Alemanha, recebeu o apoio militar dos alemães e, no meio dessa bagunça toda, no mês de Junho, tem-se início a I Guerra Mundial.
Ao longo da guerra as alianças foram formadas, a Tríplice Aliança, que contava com a Alemanha, a Itália e o Império Austro-Húngaro, e a Tríplice Entente, que contava com a Rússia, a França e a Inglaterra (e, mais tarde, os Estados Unidos). A guerra foi marcada por várias fases e reviravoltas, sendo a primeira fase conhecida como a “Guerra de Movimento”, que, basicamente, eram ataques rápidos que resultavam em conquistas de territórios por várias regiões da Europa.
Essa primeira fase se desenrolou entre Junho e Dezembro de 1914. E o nosso fato, “a trégua de Natal”, ocorreu exatamente nesse período.
A Trégua de Natal
The Illustrated London New, janeiro de 1915 - Wikimedia Commons
A guerra se espalhou rapidamente pela Europa e, em questão de meses, chegou até a Bélgica, na região de Ypres. A batalha nessa região começou em Novembro de 1914 e adentrou 1915, sendo uma das mais longas batalhas da guerra. De um lado, soldados alemães, do outro, ingleses e franceses, todos entrincheirados e organizando ataques que iam de tiros de rifles à bombardeios, mas, sem muito sucesso.
Viver sob as trincheiras garantia aos soldados uma certa proteção e ao mesmo tempo um cenário que se prolongaria por anos, causando desgastes físicos, emocionais, mentais.
E nesse cenário todo, na noite de 24 de Dezembro de 1914, houve algo completamente inusitado. De ambos os lados, os soldados deixaram suas armas de lado e deram início a uma confraternização. A história difere muito e possuí várias versões, afinal, ela ocorreu em vários pontos do campo de batalha.
Uma delas conta que os soldados alemães começaram a enfeitar com velas as árvores que estavam próximas de suas trincheiras e a cantar músicas natalinas. Do outro lado, os ingleses ao verem o que estavam acontecendo, resolveram sair de suas trincheiras com gestos de trégua e paz, e se aproximaram dos alemães. Houve reuniões entre as tropas e todos eles decidiram que não iriam lutar naquela noite.
Reprodução/Redes Sociais
Ao invés da luta, houve uma confraternização. Os soldados se juntaram e cantaram músicas natalinas juntos, trocaram presentes como cigarros, chocolates e garrafas de whisky e assim segue a noite do dia 24.
Existem relatos que houve também uma partida de futebol entre ingleses e alemães, vencido por 3 x 2 pelos alemães. Esse placar é contestado pelos ingleses que alegam que o jogo não terminou, ele foi interrompido porque a bola foi parar em monte de arames farpados e acabou furando.
No dia 25, chega-se a um acordo em que todos poderiam enterrar os seus mortos, afinal, sair das trincheiras era sempre um risco e muitos dos que morreram permaneceram com seus corpos na chamada “terra de ninguém”, o espaço de terras que ficava entre as duas trincheiras e não havia sido conquistado por nenhum dos exércitos.
Após recolherem os mortos e os enterrarem, há uma leitura do Salmo 23 e cada um, à sua maneira, faz suas preces pelos mortos. Em alguns locais a trégua durou um dia. Em outros, ela se estendeu até o ano novo.
Essa trégua foi negada veementemente pelo alto escalão dos exércitos envolvidos, afinal, não se pode estar em uma guerra e confraternizar com o inimigo. Ordens foram enviadas para cada oficial de campo dar um basta nessas confraternizações e, em caso de desobediência, os envolvidos seriam levados à corte marcial.
Refletindo sobre o ocorrido podemos perceber que os soldados que estavam naqueles campos de batalha não tinham nenhuma conexão com as resoluções políticas da guerra. Isso nos mostra que quando as resoluções políticas não são resolvidas de forma diplomática, aqueles que estão no poder usam da força para tentar fazer com que os seus interesses sejam atendidos de uma forma ou de outra.
Esses interesses são defendidos e propagados muitas vezes como atos nacionalistas, mobilizando a nação para uma determinada causa, levando pessoas a se alistarem e disporem suas vidas para combaterem um inimigo muitas vezes criado pelo Estado. Há uma comoção nacional em volta de uma “causa” e todos passam a viver em função disso.
Domínio Público
A música, além de nos contar essa linda história de resistência, nos traz uma outra mensagem. Em um trecho diz: “a mesma história novamente, todas aquelas lágrimas derramadas em vão, nada aprendido e nada ganho, apenas restou a esperança”. A “trégua de Natal” nos ensina que mesmo em meio ao caos pode existir esperança. Naquela noite, aqueles soldados foram contra tudo e contra todos ao escolherem não lutar e essa escolha também nos pertence em tudo que temos ou fazemos.
Nesses tempos tão difíceis que vivemos, que possamos nos lembrar que, como diriam os Titãs, “ainda há de haver esperança em cada um de nós”.
Este artigo foi escrito por Edu Molina e publicado originalmente em Prensa.li.