A viagem ao futuro paulista
No fim daquele ano, ele, sua irmã e seu irmão se preparam para encontrar o resto da família na maior cidade do país. Dois amigos de seu pai, que estavam voltando, iriam levá-los. A viagem foi uma aventura, foram doze horas de um trajeto cheio de paradas, programadas e não programadas.
Numa trouxa se levava sanduíches, bolos e biscoitos. No meio do caminho, o ônibus quebrou e fizemos um piquenique ao lado da estrada, tinha bastante comida e foi possível servir também a outros passageiros.
Como saímos de madrugada da cidade do interior de Minas, chegamos ao fim da tarde na maior cidade do país, numa rodoviária com uma fachada toda colorida. Em frente fica uma estação ferroviária que ele iria usar bastante no futuro.
Desceu do ônibus de viagem, pegou a sacola - uma mala era levada por um dos amigos de seu pai. Em frente, havia uma praça grande, ao lado de uma avenida. Num ponto de ônibus, esperava o ônibus da empresa municipal de transporte. Ficou lá por uns vinte minutos, até chegar o ônibus. Subiu junto com seu irmão, sua irmã e os dois amigos do seu pai. Um deles disse "daqui a pouco vamos chegar na sua casa".
Estava cansado e com fome, apesar do piquenique feito bem mais cedo. O ônibus estava vazio pois estava no contrafluxo e, assim, puderam sentar e apreciar a paisagem. O barulho e os buracos eram muitos. Logo, o ônibus passa numa ponte sobre o rio que corta um dos lados da cidade, a água já era um pouco escura e o cheiro já não animava a puxar o ar.
Chegou na casa. Era alugada, pequena mas aconchegante, e, o melhor: em frente havia uma quadra de futebol de salão. Sua mãe, suas irmãs e seu irmão mais novo estavam em casa. O período ali foi pouco, logo ele iria se mudar para um subúrbio na região metropolitana, que ficava ao lado de uma linha de trem urbano. Estava no fim do ano.
Durante aqueles poucos dias de férias, ele passava a maior parte do tempo jogando e brincando na quadra em frente à casa.
O apartamento no subúrbio foi disponibilizado e sua mãe foi buscar a chave no centro da cidade. Foram de ônibus urbano até uma praça bem grande, com muitas lojas, cheias de eletrônicos e roupas. Seus olhos verdes brilhavam com tanta coisa.
Muita gente numa fila aguardava a mesma coisa. Viu gente saindo, pulando e gritando, algo que não entendeu, mas, quando sua mãe entrou na sala, ele foi barrado na porta. O guarda disse a ele "criança não pode entrar".
Ao sair da sala, sua mãe sorria, balançando a chave, e lhe abraçou, algo não muito comum na sua família. Ela não gritou nem saiu pulando, pois também não era algo familiar. Ele ficou contente com o abraço.
O dia de mudar chegou, era domingo. Não tinha muita coisa para levar. Junto do caminhão chegou um dos amigos do pai dele, que trouxe ele do interior de Minas Gerais. Ele e seu irmão foram na carroceria junto com os móveis. Saíram do bairro, atravessaram o rio e seguiram para o subúrbio.
O amigo do pai dele era forte e muito brincalhão, não lembrava disso da viagem. Chegamos no prédio. Nosso apartamento era no térreo, mas havia um escada, dois blocos com 24 apartamentos de cada lado e sem elevador. Em frente, um terreno vazio e uma avenida. Do outro lado, um campo de futebol de várzea e um descampado grande, que virou outro conjunto habitacional.
Além da mudança da sua família, outras aconteciam no mesmo dia, gente de todo lugar do Brasil. Além do prédio deles, vários outros iguais na avenida e nas ruas ao lado. Eram centenas e muita gente estava se mudando para o novo bairro, poucos serviços públicos e comércios existiam naquela época.
Só tinha uma escola estadual próxima dos prédios, onde ele foi matriculado para terminar o ginásio, o último ano.
No apartamento, que tinha dois quartos, sala, cozinha, um banheiro e uma lavanderia bem pequena, seus pais ficaram num quarto, suas quatro irmãs no outro e ele, com seus dois irmãos, iria dormir na sala, mesmo.
Seu prédio era o 71, nos fundos ficava o 64, do lado tinha o 70 e, ao lado do 64, tinha o 69. No centro destes quatro prédios havia um espaço onde todas as crianças, adolescentes e adultos se reuniam.
Em frente ao 71, onde morava, antes de chegar na avenida, havia um terreno vazio. Juntou os pais e alguns meninos maiores para construir um campinho de futebol. Foram vários dias para, com enxadas e facões, limpar o terreno, alguns caibros foram usados para fazer os gols. Nossa diversão agora estava pronta e era a única.
As aulas não tinham iniciado, então, todo o dia, pela manhã ou à tarde, montavam-se dois times, às vezes até três. Quando isso acontecia, o jogo terminava não por tempo, pois não havia nenhum relógio, mas sim quando o time tomasse o segundo gol. No campo de terra, no final, todos sujos e com alguns arranhões em razão das quedas corriam para casa.
Logo inicia o ano letivo, ele foi estudar no horário vespertino, um horário diferente, pois havia estudado sempre pela manhã. Agora as aulas começava após o almoço, às 15h, até às 19h. Na mesma escola havia aulas pela manhã, na hora do almoço, no horário que ele estudava e a noite.
Surpreendeu-se porque as matérias ensinadas, em sua maioria, ele havia estudado no ano anterior em Minas. Estava no começo das aulas quando todos foram chamados para fazer uma prova que ocorreria em todas as turmas e turnos. A prova de matemática aconteceu no dia seguinte, ele fez com muita calma e foi muito bem.
A classe era grande e cheia de alunos, uns 35 a 40 alunos e alunas. Seja dentro da classe ou nos corredores, muito barulho, e os professores e professoras pedindo silêncio - diferente do que acontecia em Minas. Lá, todos ficavam quietos e os professores e professoras, quando chamavam atenção da sala, eram atendidos.
Já chegava em junho quando ele foi chamado na secretaria e foi informado que havia obtido a maior nota na prova de matemática da escola, junto com uma outra aluna. Ganhou uma enciclopédia e um diploma, junto com a outra aluna, numa cerimônia na classe durante uma aula de matemática. Nessa mesma época, a mãe dele soube de um curso no banco da Cidade de Deus e fez sua inscrição para fazer um teste.
O curso era de mecanografia, consertar máquinas manuais de escrever e calcular, mas a prova era bem simples, alguns cálculos matemáticos básicos e uma prova de português, interpretação de texto e gramática.
Na semana seguinte, num telegrama, a mãe dele foi avisada que ele passou no teste; deveria entregar os documentos e assinar um contrato para participar do curso. Esse curso aconteceria durante a semana, o dia todo, durante 6 meses, ou seja, até o fim do ano.
O curso de mecanografia aconteceu no prédio amarelo, ele e mais quatro alunos moravam próximo, mas os outros alunos vieram de todo o Brasil. Gente do sul, da fronteira, do nordeste e do norte. No total, eram 20 alunos meninos e dois instrutores, todos na idade de 14 a 16 anos. Começou no meio do ano e ele foi agora estudar à noite na mesma escola que estudava no vespertino.
O mês de julho começou e ele também, subia até a rua de cima para pegar o ônibus intermunicipal sempre ao nascer do sol, sempre a pé, seguia por mais de 40 minutos até o ponto de ônibus perto da prefeitura. De lá, uns 20 minutos a pé até o Prédio Amarelo. Logo pela manhã se iniciavam as aulas teóricas com apostilas, mas logo chegava o café com leite e pão, às vezes com mussarela ou presunto.
Depois, aula prática, desmontando e montando as máquinas. Essa dinâmica ocorria todos os dias, pela manhã e a tarde. Almoçava no bandejão todos os dias, de segunda a sexta, voltava quando o sol sumia, vinte minutos a pé até o ponto de ônibus. Ele já chegava cheio, muito, mais quarenta ou cinquenta minutos até chegar perto de casa.
Ele sempre passava em casa antes de ir para a escola para assistir as aulas à noite.
Na aula à noite, era o mais novo, muitos adultos e jovens que trabalhavam durante o dia estudavam na mesma classe. Muitos chegavam cansados e com fome, às vezes atrasados, em razão de trabalhar longe.
As aulas sempre aconteciam com muito barulho e conversas paralelas, a sorte dele é que as matérias de aulas ele já havia tido antes, assim, até ajudava alguns colegas com contas de matemática e nas aulas de geografia e história.
Os colegas perceberam que ele iria bem nas provas e assim foi. Sentava sempre no centro da sala, nos dias de prova. Após fazer a mesma, deixava ela na sua carteira, e sempre um dos colegas pegava a prova, copiava e devolvia. Essa cópia corria boa parte da sala e assim aconteceu várias vezes.
Mas, um dia, um professor cansado do barulho e das cópias de provas resolveu acabar com as colas. Quando chegou na sala, ele sentou no centro da sala como antes. A prova já iria começar, então o professor colocou uma cadeira do seu lado e chamou ele pra sentar ali. A gritaria foi grande, muitos esperavam conseguir a nota que faltava para não ficar de recuperação.
O professor bateu o pé, ele levantou e os colegas mandaram ele sentar. Com o barulho, o vice diretor foi até a classe e, depois de ouvir o professor e os alunos, buscou oferecer uma solução pacificadora, mantendo ele na sua carteira e os colegas conseguiram a nota para não ficar de recuperação.
Nos fins de semana, ele, naquele período, tinha uma única atividade esportiva: jogar futebol no campinho em frente ao prédio e, algumas vezes, junto com alguns colegas no prédio, corria para o campo do outro lado da avenida antes de subir para os outros bairros da cidade.
Para fazer a integração dos jovens do bairro, surgiu um torneio de futebol em algumas quadras existentes no bairro todo, todas longe do prédio. Para participar do torneio, ele e alguns amigos montaram um time de futebol de salão. Os jogos iriam ocorrer no sábado e domingo, a quadra ficava em outra área de prédios e casas, que ele pouco visitava.
Na ficha de inscrição do torneio tinha que definir o nome do time, os nomes e idades dos jogadores e levar o papel para um responsável assinar.
O nome do time ficou Paulistano, apesar de muitos terem nascido fora do Estado. Todos eram moradores do prédio onde ele morava e outros jogadores eram de prédios próximos. Era um time de futebol de salão com três reservas. Só tinha um goleiro. O treino era no campinho. Bem, não era bem um treino, pois sempre era um peladinha, ou seja, um jogo contra qualquer time ou catado que aparecia.
No torneio, pegamos uma chave onde o adversário tinha até uniforme, o time usava umas camisas brancas e os números foram feitos com fita isolante.
A quadra não era coberta, mas era cercada por uma grade não muito alta. No primeiro jogo, sem qualquer estratégia, o time tomou três gols logo no início. Não havia um técnico, organizaram a marcação e ficou assim o placar.
Desceram para o prédio todos tristes, sentaram nas escadas e combinaram montar uma estratégia para o próximo jogo. Foi combinado que somente um ficaria na frente e os outros atrás. Se perdessem mais uma vez, não se classificariam para a outra fase.
O jogo era pela manhã do domingo e todos estavam animados, o adversário, desta vez, também não tinha uniforme, usava uma camisa laranja com números pintados. A nossa continuava a mesma, branca com números em preto.
A estratégia deu certo no início, logo nosso atacante fez um gol. Como o time estava ganhando, fechamos mais ainda e o atacante também ficou marcando.
No segundo tempo, com a retranca que o Paulistano estava fazendo, o jogo continuava um a zero.
Só existiam duas bolas na quadra. Quando era jogada muito alto e caía fora da cerca, os outros jogadores dos outros times é quem buscavam a bola. Sabendo que faltava pouco para acabar o jogo, ele chutou a bola com força por cima da cerca e ela foi longe. A outra bola foi colocada no jogo, ele novamente jogou ela longe e os jogadores adversários foram reclamar, os colegas ficaram em volta dele para não ser agredido. O juiz também falou com ele, mas logo terminou o jogo.
Nessa primeira vitória, desceram para o prédio contentes e falavam das estratégias para ganhar. O próximo jogo seria só no outro sábado.
Na semana, ele voltou ao curso de mecanografia e aos estudos à noite, na escola perto de casa. Assim, deixou de participar dos jogos, peladinhas, durante a semana com os colegas do Paulistano, nesse período só ele tinha o dia todo ocupado. Os outros jogadores, alguns estudavam durante o dia, outros não estudavam, nem trabalhavam.
No fim de semana, na manhã do sábado, conversaram com ele e disseram que ele iria ficar na reserva e outro jogador iria participar em seu lugar no jogo daquele dia. Apesar de chateado, concordou e acompanhou o time.
O jogo foi difícil, o Paulistano tomou um gol, mas logo conseguiu empatar. Aquele resultado não era a melhor condição, mas o time continuava com a estratégia de se defender e atacar com um só jogador.
Terminado o jogo empatado, voltaram todos para o prédio e conversaram, pois no próximo jogo, no domingo, teriam que ganhar para ir para a próxima fase.
Domingo seria um dia longo, pela manhã teria o jogo, depois iria acompanhar sua mãe na igreja, num bingo para uma construção e, no fim do dia, teria um baile funk, domingueira que acontecia entre os prédios do bairro.
O jogo foi difícil, ele continuava na reserva, mas, no meio do jogo, seu colega que morava no andar de cima tomou um chute e se machucou. Assim, ele entrou e, pelo combinado, ficaria plantado na zaga do time, ou seja, ficaria na sobra e passando o atacante do outro time, ele teria que cortar - e assim foi. Suas entradas eram fortes, sempre derrubando o atacante. No fim, conseguiu segurar o time adversário, mas seu time também não vazou o gol do outro time.
Com mesma pontuação, a decisão da vaga seria nos pênaltis. Mas seu time agora tinha um problema: seu único goleiro não sabia pegar pênalti. Sem um goleiro reserva, ele foi parar no gol.
Eram três chutes para cada time, o Paulistano começou e marcou seu gol. Depois foi o adversário, no gol ele ficou pulando e deu sorte, o atacante chutou rasteiro mas foi para fora. No segundo chute também acertaram. Agora quem foi chutar foi o goleiro do time adversário, ele era bem forte, ele continuou pulando, mas não teve a sorte desta vez e a bola foi forte e no alto, quase no triângulo da trave.
Como o goleiro do outro time havia chutado, ele pegou a bola para chutar o terceiro e último chute, apesar de alguma reclamação do resto do time.
Ele bateu e foi gol. Classificados para a próxima fase correram para a escada do prédio e ficaram ali até ele ser chamado para ajudar sua mãe no bingo da igreja.
Naquele tempo, ele não frequentava como antes. Fez a primeira comunhão no interior e, agora, acompanhava sua mãe e ajudava, mas não participava da missa, diferente de suas irmãs e seu irmão.
No bingo, cuidava das prendas e recolhia as fichas. Quem cantava os números era o Batata, que virou professor e candidato a vereador, mas teve tão poucos votos que desistiu e voltou para as salas de aula. Almoçou e foi para a escada do prédio novamente para conversar com os colegas do time e outros.
Logo era hora de ir ao baile, que acontecia no espaço entre os prédios 77 e 69. Aqui tinha outro grupo de colegas, que trocava discos de vinil e ia no centro da capital comprar novos.
A música era sempre o funk e samba rock. Os meninos de um lado, as meninas de outro. Ele ajudava na vaquinha dos discos, tinham uma caixa que levavam a cada baile, dois toca discos e duas caixas acústicas que carregavam na mão, os colegas sempre ajudavam.
Logo chega a hora: o síndico do prédio 69 vem avisar que já deu o horário, o DJ avisa que vai tocar a última. Alguns pais e mães aparecem para levar seus filhos.
O fim de semana termina e ele volta para o apartamento, mais uma semana de curso e escola, acordar cedo, correr para não perder o ônibus, aulas teóricas e práticas de mecanografia, aulas de português, matemática, entre outras à noite.
E assim começou o futuro paulista.
Se deixei aqui algo não bem explicado ou que causou dúvidas, vou deixar aqui um e-mail específico para responder às mesmas, joseleitecoura@outlook.com
Este artigo foi escrito por Jose Leite Coura e publicado originalmente em Prensa.li.