ADÃO NEGRO - De Vilão a Anti-Herói
No filme estrelado por Dwayne "The Rock" Johnson, um ser lendário do passado, tido como uma espécie de divindade conhecida por punir os maus de maneira impiedosa e mortal, é acidentalmente libertado num mundo onde seu senso de justiça pode ser considerado muito controverso.
Ressurgido no seu país natal, uma terra que atravessou séculos de invasões e governos ditatoriais, o homem conhecido como Teth-Adam descobre que o tempo presente pode não ser tão diferente do seu passado.
Ainda que Adão Negro seja um filme de super-heróis onde uma alegoria sobre imperialismo, invasões preventivas e uso da força sejam tratados superficialmente, o debate está posto na interpretação particular dos quadrinhos sobre o que é ser herói, vilão, salvador ou coisa nenhuma.
Depois de um ano lutando contra ladrões, estelionatários, golpistas, abusadores e corruptos na revista Action Comics, a editora National Periodics (hoje DC ) achou que era hora de dar ao seu principal personagem de quadrinhos, o Superman, a chance de enfrentar desafios dignos de sua alcunha de "Homem de Aço".
Os editores encomendaram aos criadores Jerry Siegel e Joe Shuster, responsáveis pelas histórias, um tipo diferente de adversário, que oferecesse dificuldades reais para ser sobrepujado.
No número 13 de Action Comics, de julho de 1939, surge então um cientista sinistro, careca e que construía traquitanas capazes de atordoar ou mesmo ferir o poderoso herói. Não, não era Lex Luthor e sim, o Ultra-Humanóide, considerado o primeiro super vilão dos quadrinhos.
Inspirado claramente numa longa tradição da literatura de ficção científica onde homens de ciência sem qualquer sanidade mental ou escrúpulos morais passam por cima da ética, utilizando a ciência para objetivos megalomaníacos, o personagem inaugurou o que hoje conhecemos como o conceito do Supervilão, que a antiga DC soube muito bem expandir para outros de seus super-heróis, assim como suas concorrentes editoriais da época.
Entre elas, uma certa Fawcett Comics, responsável pela publicação do Capitão Marvel, mais conhecido hoje como Shazam!
Apostando numa espontânea desconstrução do gênero, as histórias do Capitão tinham um foco maior no cômico, no humor e isso gerou reflexo em sua galeria de vilões.
Para se ter uma ideia, um dos arqui-inimigos do Marvel (além do impagável Doutor Silvana), era o Sr. Mente, uma lagarta de intelecto privilegiado que quase conquistou o mundo por diversas vezes. Teth-Adam, ou Adão Negro, seria somente mais um vilão que parecia ter saído de filmes-pastelão na vida do querido defensor.
E para piorar, era um personagem de um tiro só, feito para provavelmente não tornar a aparecer outra vez.
Na história publicada em 1945, o Capitão Marvel descobre a existência de um herói antecessor seu, que empunhava os mesmos poderes e criado pelo mesmo tutor, o Mago Shazam, milênios atrás no antigo Egito. Em busca de um campeão para lutar contra o mal e as injustiças, Shazam escolhe o então nobre e virtuoso Teth-Adam para a importante tarefa, conferindo-lhe poderes extraídos de antigas divindades egípcias, bastando apenas pronunciar o seu nome (SHAZAM! ).
No entanto, o julgamento do mago se mostra equivocado, pois o pupilo se deixa corromper pelo enorme poder e se torna um déspota, assassinando o faraó e tomando o trono do Egito. Sem conseguir remover os poderes de Adam, o mago o bane para a estrela mais distante do universo.
Ainda em posse do poder de Shazam, Adam sobrevive e passa os próximos cinco mil anos voando em regresso ao Planeta Terra para se vingar do mago e concluir seus planos de dominação.
Na Terra, o antigo herói que se corrompeu, encontra a oposição do novo campeão do Poder de Shazam. E ao fim de uma batalha encarniçada, o Capitão Marvel obriga Adam a dizer a palavra mágica para reverter à forma mortal, mas como havia passado mais de cinco mil anos desde a transformação, o corpo mortal do Adão se desfaz. E foi só isso.
O Adão Negro jamais voltou a aparecer nos quadrinhos pelos próximos vinte e poucos anos. A editora Fawcett decretou falência em 1955, após uma longa batalha judicial com a concorrente DC, que acusava o Capitão Marvel de ser um plágio do Superman.
Na década de 1970, a própria DC firma um acordo de licenciamento com a massa falida da Fawcett e passa a publicar o Capitão novamente. Nessas novas histórias, o Adão retorna, ressuscitado pelo Dr. Silvana. Em 1987, a DC adquire definitivamente os direitos sobre o Capitão Marvel e sua rica mitologia, a ponto de modificar suas origens na década seguinte.
Nessa versão atualizada para os novos tempos, o Adão Negro está intimamente ligado à origem do herói de vermelho. Ele ainda é um herói que se rebela contra seu criador no antigo Egito, mas ao invés de ser banido para uma estrela, sua essência é aprisionada por um feitiço num antigo templo faraônico.
A essência é absorvida por um descendente do Adão, um criminoso chamado Theo Adam, de maneira acidental quando este se finge de guia no tal templo para os arqueólogos Mary e Charlie Batson, pais de Billy Batson, o garoto que viria ser o Capitão Marvel.
O Adão Negro ressurge pelo corpo do descendente, com os mesmos poderes, mas com a personalidade criminosa e doentia de Theo Adam, que assassina os dois arqueólogos. Ao descobrir que o Adão foi libertado e se sentindo culpado pela morte do casal, o velho mago Shazam sai em busca de Billy e lhe oferece a chance de vingar a morte dos pais combatendo a ameaça do Adão, se tornando o poderoso Capitão Marvel.
A azeitada na história do personagem, dando objetivos interessantes a ele, promoveu o Adão, outrora vilão chinfrim e caricato a um dos principais oponentes do Marvel. Mas como é comum nas histórias modernas de super-heróis, aconteceu uma importante mudança no status do malfeitor, alguns anos depois.
Após ser finalmente preso e julgado pelo assassinato do casal Batson, a personalidade de Teth-Adam, o Adão original ressurge no corpo hospedeiro do seu sucessor e este informa que sua consciência estava sob seu domínio. A coisa ganha contornos curiosos quando o próprio Capitão Marvel passa a defender a tese de que Teth e Theo Adam são personalidades distintas, e Adão Negro é posto em liberdade sob a custódia da Equipe Sociedade da Justiça.
Basicamente temos um novo personagem, o outrora herói do passado vivo no presente tendo o corpo do descendente como hospedeiro. O novo/velho Adão tenta se redimir e se encaixar num mundo diferente do seu no passado, onde ele ainda é visto com desconfiança por conta das maldades feitas pelo seu parente.
Ainda é revelado que as relações entre ele e o seu mentor, o mago Shazam, tinham lacunas complexas e ideológicas há cinco mil anos no passado. Teth-Adam não era egípcio e sim, oriundo de um país fictício no oriente médio conhecido como Kahndaq.
Era um homem de fato nobre e bom, mas que tinha sofrido uma injustiça ao ser escravizado e ter sua família morta por um déspota que havia invadido e conquistado sua terra e seu povo.
Ao receber o enorme poder, Adam não só liberta os escravizados, derruba o império do conquistador, dizimando sua força militar e matando o déspota, como também assume o poder com mão de ferro, promovendo a pena capital e expandindo os domínios de Kahndaq conquistando outras terras consideradas inimigas.
Diante da justificativa dada pelo seu pupilo de que aquela era a única maneira de manter a paz e evitar que Kahndaq se tornasse novamente alvo de conquistadores estrangeiros, o mago Shazam o adverte de que a finalidade do poder nunca deve ser a de subjugar através da força, ainda que sob prerrogativas de se conseguir paz e justiça.
Os dois entram em confronto e o resultado, conhecemos. A mudança do personagem, que passou a ser retratado como nem herói nem vilão e que tem a sua própria visão ao mesmo tempo distorcida e lógica de justiça.
Ser benevolente com quem pratica o mal ou usar a força de maneira proativa e letal sob a justificativa de evitar um mal maior? Este é o grande dilema moral de um personagem sem lugar no mundo e em busca de uma identidade que nasceu caricato e bidimensional, mas que foi desconstruído e reconstruído de maneira muito mais interessante.
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.