Alexa: eu ouço gente morta
Há mais de duas décadas, no filme O Sexto Sentido, um garotinho assustado revelava ao mundo via – e ouvia – pessoas mortas. O tempo todo.
Cole, personagem vivido pelo ator mirim Haley Joel Osment, passou o filme todo tentando explicar ao seu psicólogo, vivido por Bruce Willis, o único adulto que acreditava em sua história, que falar com quem estava “do lado de lá” era algo corriqueiro. Tanto que o próprio psicólogo não estava mais entre os viventes.
Depois de tantos anos, podemos tirar algumas conclusões: primeira, Haley Joel Osment não é mais criança; segunda, o filme entrou para a história do cinema com um dos mais espetaculares plot twists já vistos; terceiro, se você não havia assistido a O Sexto Sentido, acabou de tomar um dos mais espetaculares spoilers da história; e quarto, dentro em breve, ouvir pessoas mortas poderá se tornar tão banal quanto era para o garoto.
Espera. Não estou afirmando que a humanidade repentinamente passará por um fenômeno paranormal, possibilitando a todo e qualquer um faculdades mediúnicas avançadas. Mas a tecnologia já está pronta para dar uma mãozinha. Ou ao menos, enganar você com muita qualidade.
De lá pra cá
Na mais recente edição do evento anual dos desenvolvedores da Amazon, o cientista chefe de inteligência artificial para a assistente virtual Alexa, o indiano Rohit Prased, fechou sua apresentação com a impressionante imagem de uma senhora lendo um trecho do livro O Mágico de Oz para seu netinho.
O que há de impressionante nisso? Nada, não fosse o fato da voz da avó do garoto estivesse saindo de uma bolinha eletrônica… e assim como o psicólogo de O Sexto Sentido, também tivesse passado desta para melhor.
Aqui está o link. Vale a pena assistir. O trecho em questão está em 1h01m57s do vídeo. Vá lá e volte, a gente espera! É bem rápido.
Que feitiçaria é essa que a Amazon apresentou? Como uma Alexa pode fazer a comunicação entre nosso mundo e o além?
Parafraseando a filósofa Joana Prado, não é feitiçaria, é tecnologia. A Alexa não pode fazer isso na verdade. Ao menos, ainda. É aqui que a Amazon “roubou” um pouquinho no jogo. E onde entra o detalhe mais fascinante desta história.
Segundo Rohit Prased, curiosamente conterrâneo de M. Night Shyamalan, diretor de O Sexto Sentido, os desenvolvedores de inteligência artificial da Alexa perceberam um modo de fazer o dispositivo, além de gerar raciocínios e respostas, emular – ou imitar – o padrão vocal de qualquer pessoa com precisão, através de menos de um minuto de qualquer registro vocal.
Prased ainda foi enfático em dizer que a nova funcionalidade (ainda não se sabe quando estará disponível para o grande público) não almeja diminuir a dor da perda, mas sim perpetuar a memória de quem já foi desta para melhor.
Humanos imperfeitos, como sempre
Também fica claro que esta função, que pode ser confortante para alguns e assustadora para outros, gerou questionamentos. A principal delas, que dividiu boa parte dos jornalistas e internautas mundo afora, é a possibilidade enorme de este recurso ser usado para a produção de deepfakes.
Pense em um papagaio de altíssima capacidade, e com poder de imitar até as mais detalhistas inflexões. Com estas características, uma Alexa pode falar por qualquer um. Morto ou vivo. E isso pode ser tanto usado para manifestações artísticas e lúdicas, quanto para a perpetração de golpes ou crimes de ódio. Tudo com qualidade de ponta.
Não é de se imaginar que a Amazon vá colocar limites nas imitações da Alexa. Ou ao menos um cacoete que nos faça perceber que é a assistente virtual que está falando, não uma pessoa.
Uma coisa é certa: como dizem nos escritórios da companhia, estamos no início da era de ouro da Inteligência Artificial. Ouvir pessoas mortas é apenas um dos pequenos truques que conheceremos. Por uma daquelas curiosidades que só a arte explica, logo depois de O Sexto Sentido, Haley Joel Osment estrelou um filme de Steven Spielberg. O título? Inteligência Artificial, onde vivia um andróide que resolveu virar gente.
Este artigo foi escrito por Arthur Ankerkrone e publicado originalmente em Prensa.li.