Alfred Hitchcock apresenta: a câmera subjetiva como instrumento de referência à psicanálise
Imagem - Pexels
Ele foi o mestre do suspense, das intrigas e reviravoltas. Alfred Hitchcock, em sua narrativa cheia de crimes, mortes e fobias humanas, criou raízes no cinema moderno e cativou, de maneira primordial, desde o público comum até os cinéfilos mais exigentes.
Em 1899, na capital inglesa, nasce Hitchcock. Sua carreira cinematográfica começa em 1922, quando torna-se cenógrafo e assistente de direção. Nesse ano, ele produziu o seu primeiro filme, chamado Number Thirteen, uma comédia protagonizada por Clare Greet e Ernest Thesiger, amigos do cineasta. Number Thirteen não chegou a ser finalizado. Há boatos de que o dinheiro acabou, que Famous Player-Lasky (subsidiária inglesa da Paramout Pictures) deixou a Inglaterra, entre outras histórias.
Em 1923, Hitchcock tem sua grande chance: durante as filmagens de Always Tell Your Wife, o diretor Seymour Hicks adoece. Hitchcock, que escrevia roteiros e ajudava na direção de arte, termina o filme, mas seu nome nunca foi creditado como diretor. No suspense, sua estréia acontece em 1926, com o thriller The Lodger: the story of the London Fog, baseado nos homicídios de Jack, o Estripador. Dois anos depois, Alfred Hitchcock sobe ao altar e casa-se com a assistente de realização Alma Reville, com quem teve uma filha, Patrícia.
Depois de ter produzido 10 filmes no cinema mudo, Hitchcock realiza, em 1929, Blackmail, primeiro filme sonoro britânico. Já na década de 1950, ele se torna cidadão norte-americano e muda-se para revolucionar as produções hollywoodianas.
Nos EUA, Hitchcock começa registrando sua marca com Rebecca, obra que lhe rendeu a primeira nomeação ao Oscar por Melhor Realizador. Clássicos como The Rear Window (1954), Vertigo (1958) e Psycho (1960) são produzidos em seguida para fazer de sua filmografia de 54 filmes (sendo 10 deles do cinema mudo) uma das mais geniais de todos os tempos.
A câmera subjetiva
O “objetivo” e o “subjetivo”, no cinema clássico, se distinguem tradicionalmente graças ao uso da câmera objetiva ou da câmera subjetiva. Dentro da narrativa, a câmera subjetiva ocupa o lugar de um personagem e nos mostra o que esse personagem vê, enquanto que a câmera objetiva nos mostra quem é esse personagem. Produz-se assim uma espécie de identidade Eu = Eu: identidade do personagem visto e que vê, mas também identidade do cineasta-câmera, que vê o personagem e o que o personagem vê. Objetivamente, a definição de câmera subjetiva é aquela que simula o olhar de um personagem que participa mais da ação que acontece na cena.
Para Arlindo Machado (1996), há uma crescente hipérbole do sujeito, desde que o cinema passou a usar a câmera subjetiva. A construção cinematográfica em que há uma coincidência entre a visão dada pela câmera e a visão de um personagem particular, coloca o espectador na cena – “eu, espectador, vejo na tela exatamente o que o personagem vê no seu campo visual" (1996, p. 173).
Em um determinado ponto da história, a câmera subjetiva passou a ser usada para intensificar as narrativas cinematográficas. De acordo com a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, Robert Montgomery foi pioneiro deste plano, quando filmou A Dama do Lago, de 1946. Esse clássico noir se assemelha muito às obras de Hitchcock. Suspense, assassinatos e intrigas misteriosas compõem sua narrativa. Mas as semelhanças entre os dois diretores não são apenas coincidências - eles trabalharam juntos em Sr. e Sra. Smith.
Um Corpo que Cai traz a câmera subjetiva como instrumento de referência ao medo, à fobia. Neste filme, a presença da câmera subjetiva está nos momentos em que o detetive Ferguson (James Stewart) tem seus momentos de acrofobia (medo de altura). No início do filme, quando, ao tentar salvar o colega policial, Ferguson fica pendurado no topo do prédio e olha para baixo, temos a sensação de estar na pele do personagem.
No meio da trama, Scottie tem vertigens ao olhar para baixo na escadaria da torre da igreja. Neste cena, para dar o efeito de movimento, exatamente como acontece quando temos uma vertigem (sensação de que tudo está “rodando”) Hitchcock deu um zoom in na câmera, ao mesmo tempo que a puxou para cima.
Em Disque M para Matar, as principais cenas em que a câmera subjetiva é usada pelo cineasta são as que antecedem a tentativa de assassinato de Margot Wendice (Grace Kelly): quando o assassino Swan (Anthony Dawson) entra no apartamento e olha em direção à porta; em seguida, Swan olha para o relógio; enquanto isso, no restaurante, Tony Wendice (Ray Milland) olha duas vezes para o relógio; na cabine telefônica, Tony liga para a esposa e a câmera subjetiva mostra, num plano detalhe, o “M para matar” no aparelho; no apartamento, quando Margot atende ao telefone, a câmera subjetiva se movimenta do perfil da atriz até a ótica do assassino (Swan), que sai de trás da cortina.
Assim como na maior parte da obra hitchcockiana, em Psicose a câmera subjetiva intensifica os momentos que antecedem o perigo. Neste clássico, ela atua como elemento de puro suspense ao mostrar a casa do ponto de vista do hóspede, ou na famosa cena do chuveiro, em que a câmera subjetiva coloca o espectador na ótica do assassino ao abrir a cortina e, no momento do assassinato, ao mostrar o ponto de vista da vítima ao ser esfaqueada.
Janela Indiscreta é um caso a parte, pois Hitchcock usou a câmera subjetiva em praticamente todas as cenas. É através desta técnica, que o cineasta fez referência ao conceito de voyeur, ao observador compulsivo.
Medo e câmera subjetiva: a receita para o thriller perfeito
O medo é parte do suspense. Hitchcock usou o medo a seu favor e tornou-se um dos mais respeitados cineastas de todos os tempos. De acordo com Truffaut, um dos seguidores mais fiéis da obra hitchcockiana, o cineasta era um amedrontado, característica que o fez filmar o medo com tamanha maestria e o ligou ao sucesso (TRUFFAUT, 2006, p. 24). Sabe-se, ainda, que foi na infância, durante a temporada que passou com os jesuítas, que o medo se fortaleceu no diretor.
"Medo moral, de ser associado a tudo o que é mau. Sempre me mantive afastado do que era mau. Por quê? Por medo físico, talvez. Tinha horror aos castigos corporais. Naquela época havia a palmatória. Acho que os jesuítas ainda a empregam. Era de borracha muito dura. Não batiam de qualquer jeito, não, era como a execução de uma sentença.
Mandavam você ir ver um padre no final do dia. Esse padre escrevia solenemente o seu nome num registro com a menção do castigo a ser infligido, e você passava o dia inteiro nessa expectativa." (TRUFFAUT, 2006, p. 33)
Quando Hitchcock era perguntado se alguma vez tivera muito medo de alguma coisa, ele respondia: “sempre” (WARD, 2005, p. 15). Aos seis anos, seu pai lhe mandou à delegacia, acompanhado de um bilhete, depois de fazer uma travessura em casa. O policial de plantão leu o bilhete e trancou Hitchcock em uma cela por alguns minutos. Foi desse fato que Alfred passou a ter medo da polícia.
Para Hitchcock, a intensidade do medo sentido pelo espectador depende da sua identificação com o personagem em perigo. “Na situação clássica da bomba que explodirá numa determinada hora, é o medo, o temor por alguém, e esse medo depende do grau de intensidade com que o público vai se identificar com a pessoa em perigo” (TRUFFAUT, 2006, p. 76)
"Na estréia de Janela Indiscreta eu estava sentado ao lado da mulher de Joseph Cotten e, no momento em que Grace Kelly vasculha o quarto do assassino e que este aparece no corredor, ela ficou tão perturbada que se virou para o marido e disse: 'Faça alguma coisa, faça alguma coisa.'" (TRUFFAUT, 2006, p. 77).
Outro ponto a ser mencionado é a questão da fobia, muito bem representada por James Stewart em Um Corpo que Cai. Segundo Ivan Ward, nos filmes que Alfred Hitchcock fez depois de Freud ser conhecido, vários personagens têm fobia. “A teoria do trauma é usada para explicar o motivo ou dar força à narrativa” (WARD, 2005, p. 14). Podemos usar como exemplo para esta afirmação o detetive Ferguson, que ao tentar salvar o colega de profissão, acaba dependurado no topo de um edifício e passa a ter vertigens desde então.
Mas, podemos dizer, então, que fobia e medo têm o mesmo significado? Para Rita Calegari, chefe do departamento de psicologia do Hospital São Camilo-Pompeia, o medo é uma reação de autopreservação. "Ele não deve ser combatido e eliminado. É desejável, saudável e importante para nossa sobrevivência", explica.
A fobia, no entanto, interfere na vida cotidiana da pessoa e nela existe um alto nível de ansiedade. "Muitos que sofrem de fobia não a interpretam como doença, mas como falha do caráter e da personalidade. O fóbico reconhece que seu medo é excessivo, mas não consegue controlá-lo", enfatiza.
Identificação por meio da câmera subjetiva: o espectador voyeur
O teórico francês André Bazin considera o telespectador como aquele que olha para a tela como se olhasse o mundo que o rodeia, realizando uma seleção de centros de interesse; denomina-o de espectador não programado. Este mesmo teórico costumava ver o crime, a morte e o sexo como profanação. Ele era contra a exibição de tais cenas nos cinemas (p. 15).
Em 1949, o psicólogo Hugo Mauerhofer aborda a passividade o espectador retratada pela ausência de espírito critico. Segundo ele, filmes tem como função básica oferecer um prazer compensatório , um “alívio imaginativo” que leve o espectador para longe dos problemas do cotidiano. Para isso, ele deve estar permeado pelo que o psicólogo chama de situação cinema – num isolamento o mais completo possível do mundo exterior e de suas fontes de perturbação visual e auditiva, uma fuga voluntária da realidade. Em uma abordagem semelhante a citada acima, o teórico Jean-Louis Baudry fala sobre cinema como uma ferramenta alienadora das pessoas:
"O espectador identifica-se, portanto, menos com o representado, o espetáculo em si, do que com o que esse espetáculo coloca em jogo ou em cena; com o que não é visível, mas faz ver, e faz ver com o mesmo movimento que ele, espectador, vê – obrigando-o a ver o que ele vê, isto é, a função garantida pelo lugar mutável da câmera". (AUMONT, op. cit., p. 258).
Alfred Hitchcock foi o primeiro cineasta que destacou o voyeurismo no cinema através do filme “Janela Indiscreta” (1954). O protagonista Jeff interpretado por James Stewart observa a vizinhança através de uma lente tele-objetiva. Faz dessa atividade um hábito enquanto encontra-se confinado em casa por causa de uma lesão na perna. O personagem espiona todos os passos dos vizinhos, e o espectador adquire o papel de espião a medida que Jeff fica obcecado pelo cotidiano das pessoas na vila.
Originalmente, o significado do termo “voyeurismo” está relacionado ao sexo. O dicionário de língua portuguesa Michaelis define o termo como “excitação sexual apenas pela observação de cópula praticada por outros ou pela observação dos órgãos genitais de outrem; mixoscopia.” Na relação com o cinema, prevalece o caráter de observação da vida alheia como fonte de prazer e satisfação pessoal.
Em “Janela Indiscreta” o diretor estabelece uma interatividade com o espectador, colocando-o como voyeur da vida do personagem “Lars Thorwald”, o assassino interpretado por Raymond Burr. Um exemplo claro disso é quando Lars confronta Jeff com a seguinte fala: “o que você quer de mim?”, jogando a pergunta para o espectador com um close-up em seu rosto.
A prática do voyeurismo na era contemporânea manifesta-se de várias formas, mas uma de suas características marcantes é quando o voyeur não interage com o objeto (pessoas que praticam o ato e muitas vezes sequer têm ciência de que estão sendo observados). À espreita, o voyeur pode observar a ação com o auxílio de binóculos ou câmaras, como acontece em “Janela Indiscreta”.
Segundo o psicólogo Arlindo Salgueiro, o voyeurismo é uma maneira de realizar os próprios desejos através de outras pessoas. É típico de quem não se sente apto a satisfazer as próprias vontades por inibição ou alguma dificuldade. Mas qualquer um pode ser um voyeur em potencial. Não é uma patologia, pelo menos em suas formas mais amenas. “Se fosse assim, todos nós seríamos patológicos”, diz Salgueiro.
O voyeurismo nasce de uma insatisfação pessoal, de uma falha da percepção dos sentimentos. “Quando a pessoa não está distante das próprias emoções, ela se basta e não precisa de projeções de si mesma. Olhar os outros é projetar-se neles”. Também é uma forma de viver fantasias onipotentes. “Através do voyeurismo, o indivíduo viaja” (SALGUEIRO in GOMES; STERQUE).
Alfred Hitchcock foi um personagem fundamental para as artes, comunicação e ciência. Estudar sua obra permitiu afirmar a relação direta entre sua obra e os mais diversos conceitos da psicanálise. Além disso, Hitchcock foi um cineasta livre das amarras comerciais da indústria hollywoodiana e, portanto, produzia filmes pensando, em primeiro lugar, no público. Dessa maneira, seu legado nos mostra uma brilhante carreira, em que seu talento foi evidenciado mais do que qualquer outra coisa.
Sua obra é tão fundamental para as artes visuais quanto para o entendimento da psicanálise através de suas referências. Realizar esta análise foi como imergir na história deste mestre do suspense para entendê-lo sob os pontos de vista técnico e científico, considerando também os aspectos subjetivos como a sua sensibilidade – fator essencial para que um artista conclua sua obra e para que o entusiasta a contemple. Foi através deste olhar que se pode entender a genialidade de Alfred Hitchcock.
Referências bibliográficas:
GOMES, Gabriela; STERQUE, Dione. (2002). Caderno Mídia. Edição de 15 à 22 de junho de 2002. http://www.online.unisanta.br/2002/06-15/midia-1.htm
MACHADO, Arlindo. Cinema e Virtualidade. In: XAVIER, Ismail (Org.). O Cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
TELLES, Sérgio. O psicanalista vai ao cinema: artigos e ensaios sobre psicanálise e cinema. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
TRUFFAUT, François. Hitchcock / Truffaut: entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WARD, Ivan. Conceitos da psicanálise: fobia. Rio de Janeiro: Relume: Ediouro: Segmento-Dueto, 2005.
Este artigo foi escrito por Sarah Souza e publicado originalmente em Prensa.li.