Amor e cadeiras de rodas
No último dia 26 de julho, eu e minha noiva – somos pessoas com deficiência e cadeirantes – fizemos 14 anos de relacionamento problemático por causa da visão da deficiência. Eu e ela temos uma deficiência que por si mesma, já tem um nome problemático que exercita a pessoa a interpretar não com o conceito que tem, mas o conceito da deficiência em si. Paralisia cerebral não é uma “paralisação” cerebral, e sim, uma lesão de alguma forma, por causa de uma falta de oxigenação cerebral. No meu caso foi por causa do parto – por não ter um pediatra na hora – e piorada graças a uma febre por causa de uma pneumonia/caxumba aos 2 anos. Minha noiva foi prematura e o médico não deu muito tempo de vida, fazem 37 anos.
A questão da deficiência é uma questão de normalidade e anormalidade segundo corpos padrões, em ter ou não mobilidade. Mas, de alguma forma, há uma dependência como se não houver um motorista, não se tem transporte para ir em algum lugar. Há um grau de dependência de transporte e autonomia desde sempre, pois, o ser humano é um ser social e gregário por ser primata (ou símio). E por temos uma deficiência, não te faz não ser humano, mas é um corpo que exige uma outra interação com a realidade. A paralisia cerebral exige de mim uma outra visão, mas, é uma visão alimentada desde o mundo onde eu me percebo. Por isso mesmo, Buda vai dizer que somos o que pensamos, porque somos aquilo que fazemos da nossa realidade e nossa realidade é a deficiência e gostando o não, ela existe.
1 – A construção do conceito de deficiência
Sempre o ser humano – e os organismos biológicos – viveram e presenciaram a deficiência como recorrente. O mundo primitivo era um mundo recorrente de predadores e de doenças – inclusive, morriam porque não conseguiam defecar – e então, o chefe do clã tinha o dever de eliminar corpos que não trariam benefícios ao clã. Como disse em um texto no meu blog, o primeiro ato capacitista foi o chefe do clã eliminar um corpo “defeituoso” porque não era como os outros e inventar ser castigo de algum “deus”. Ou eliminar crianças só por causa da comida escassa, pois, clãs teriam no máximo 100 membros ou um pouquinho mais.
Esse ato, se começa a justificar a morte, a eliminação daqueles que não podem trazer para os outros, benefícios. A questão da deficiência sempre foi uma questão não resolvida, uma questão do outro com o corpo que não tem as mesmas características do que a maioria. Mas, onde – dentro da natureza como flora e fauna – há corpos e elementos perfeitos dentro dos critérios humanos? Porque, dentro de critérios humanos, não são os critérios naturais. Dentro disso, poderíamos até mesmo, entrar na teoria platônica das formas. O que seria o mundo das ideias e as formas?
Muito cedo, aprendemos que ser um corpo “deficiente” é ser um corpo indefeso e que não sabe se defender. Por causa do conceito da deficiência como qualidade, mas, a deficiência é uma condição e como condição, o ser humano se adapta. Acontece, que essa visão biomédica da deficiência, começa na modernidade e vai avançando conforme as descobertas feitas. Porque, bem antes, a idade média não achava que a deficiência era uma condição e sim, uma doença como outra qualquer. Mesmo com vários avanços científicos na modernidade, a deficiência, ainda, é vista em alguns casos, como pessoas doentes.
Aqui no Brasil, foram atrasos imensos de certos preconceitos (conceitos não examinados), que não se consegue eliminar. Como um corpo deficiente físico (delimitação física), ter a mesma causa e não poder andar de jeito nenhum, pois, se confunde a paraplegia e a tetraplegia, com a deficiência congênita. A paralisia cerebral é muito pior, porque mesmo que tenha vários graus, as pessoas vão padronizar um só grau. Estamos numa sociedade que padroniza tudo e adjetiva tudo.
A questão é: onde se veio essa visão da deficiência no Brasil? Podemos dizer, sem medo nenhum, que essa visão começa com a fundação da AACD (Associação a Assistência das Crianças Deficientes) que na sua fundação, tinha a “defeituosa” em seu nome. O fundador foi um médico ortopedista chamado Renato da Costa Bomfim em 1950, e por muitos anos, foi uma referência de tratamento das pessoas com deficiência dentro da América Latina. Do mesmo, por vários anos, usaram a “defeituosa” para designar crianças que tinham uma deficiência e trazendo conceitos biomédicos europeus.
Criaram aqui uma medicalização do conceito de deficiência e dependência do corpo deficiente, que por décadas, levaram pessoas a serem internadas e não podiam viver na sociedade,
2 – O “louco” e o “defeituoso”
Podemos ver, no livro do filósofo contemporâneo Michel Foucault, História da Loucura – onde, no momento, li o primeiro capítulo – que muitas doenças eram motivo de isolamento de uma comunidade. Como disse acima, isso começa com o chefe do clã decidindo quem deveria morrer e quem deveria viver para o bem da comunidade. Esse “bem” deveria de ser pensando sempre no intuito de mistificar tudo e usar essa mística dentro de mudanças de comportamento ou, simplesmente, uma desculpa para o ato de “matar”.
Mas, na idade média – com a caridade cristã – esse tipo de atitude toma um outro momento. Estudos recentes nos mostram, que havia pessoas com deficiência dentro da sociedade esmolando e que essa prática, continua nas portas das igrejas, como havia, em qualquer templo. Foucault nos traz uma reflexão da visão moderna do corpo a partir de renascença até hoje, como o corpo também pode ser usado como formas de poder.
A meu ver, a questão do corpo como objeto vem do cartesianismo – filosofia do filósofo Rene Descartes (ou Renatus Cartesius) – quando ele coloca o corpo como uma máquina que é uma extensão da realidade. Ou seja, há uma “coisa” dentro da extensão da realidade e outra “coisa” pensante. Enquanto antes havia um ser pensante e autônomo dentro da realidade, agora tem duas “substâncias” que podem ser o ser humano. O corpo que interage nessa realidade e o pensamento (podemos colocar como alma) que distingue eu das outras coisas. Mas, duas perguntas devem ser feitas na filosofia: o que é realidade? O que seria uma coisa?
Descartes vai dizer a ícone frase “penso, logo existo” para dizer que eu posso duvidar de tudo, mas, não posso duvidar da minha existência. Foi um pensamento que mudou a nossa visão – leia-se, ocidental – da realidade e de nós dentro da realidade. já o que “é uma coisa” tem uma importância muito grande dentro do nosso pensamento, que graças a ela, se originou a filosofia. O senso comum vai colocar <<coisa>> como um objeto concreto que pode ser entendido como objeto, mas, <<coisa>> não teria um objetivo dentro de uma interação, por exemplo. Quando Descartes diz uma “coisa extensa”, ele coloca que pode ser qualquer corpo que esteja captado dentro da nossa realidade e que podemos duvidar ou não daquilo. A <<coisa>> é um objeto indefinido de um exemplo hipotético de um exercício mental.
O problema não foi Descartes, o problema foi a interpretação do seu pensamento. Transformaram a “coisa extensa” em um mecanismo biológico que pode ser classificado como “máquina biológica” que poderia ser pesquisada e modificá-la. O “defeituoso” não é mais uma alma castigada em um corpo não perfeito, mas, um corpo sem o mecanismo que comanda andar ou outras coisas. Ou seja, digamos, uma metafisica médica. O ser com o corpo autônomo (herdamos dos gregos) é feliz graças a uma, suposta, perfeição daquilo que lhe falta. Mas, tem um outro problema, esse corpo não é racional? Ele não sente vontade ou desejo? Se não tiver autonomia, não.
Então, num modo geral, os iluministas – não estou negando a importância deles – se esqueceram que existem os desejos e as vontades dentro de uma autonomia ou não. Um “corpo” não é só racional e o problema não é “ser racional” – como o século vinte nos provou – mas, como usamos essa racionalidade. Se teve um “efeito colateral” que foi colocar o ser humano como uma “máquina biológica”, onde só existe ondas elétricas e efeitos químicos que se interagem com o que nosso cérebro quer no momento. Portanto, os “loucos” e os “defeituosos” são “máquinas biológicas” que deram errado e precisamos isolar essas máquinas na sociedade.
Por isso, entra no Brasil a ideia europeia de “criança defeituosa” como uma “máquina” que deu errado.
3 – Conclusão
Sendo assim, as “crianças defeituosas” não podem crescer e se reproduzir porque não pode se autossustentarem, pois, o capitalismo vai colocar como saudável uma pessoa que produz. Ora, o socialismo também, porque elas podem estudar, mas, elas têm que ter sustento uma vida inteira dentro de instituições ou dentro de casas de acolhimento. Com leis afirmativas, as pessoas já podem trabalhar no estrangeiro, pois, sai muito mais barato você dar condições de trabalharem do que sustentarem instituições e o próprio indivíduo.
Mas, quando há amor dentro de duas pessoas com deficiência? Será que esse “defeituoso” ainda acontece sem ser mencionado?
Este artigo foi escrito por Amauri Nolasco Sanches Junior e publicado originalmente em Prensa.li.