Amor, sexo e robôs
Como jornalista, sou naturalmente inquieta. Outro dia, percebi que da infância até hoje, mudei de cidade sete vezes. Fui reincidente em algumas.
Meus tempos de criança foram passados em Joinville, norte catarinense. Não foram tempos fáceis, minha mãe criou minha irmã e eu praticamente sozinha. Digo “praticamente” porque uma tia, já citada em outra reportagem aqui na Prensa, tinha uma situação financeira mais confortável e nos ajudou muito. Mas vamos ao que interessa para nossa história.
Tenho uma prima um ano mais nova, filha desta tia em questão. Até hoje somos grandes amigas. Quando eu tinha por volta de oito anos, ela ganhou uma boneca Bebê Coração, da Estrela. Procure na Internet. Para os dias de hoje, ela é meio feinha. Na época, era a sensação.
Acho que vibrei mais que a prima. Minha mãe não tinha condição de dar um brinquedo daquele nível, então eu cuidava da bonequinha com dedicação e um carinho quase obsessivo.
O que mais me fascinava nela? Se colocasse um estetoscópio (que vinha na mesma embalagem), poderia ouvir seu coraçãozinho cibernético batendo. De verdade!
A imaginação fértil da pequena Clarissa voava alto. Eu entendia aquela criaturinha com pele de vinil como um ser vivo, senciente e desesperado por minha atenção. Do alto dos meus oito anos, chegava a cobrar da prima tanta dedicação e amor quanto eu dava à bonequinha.
Toda essa introdução para chegar ao assunto principal: do mesmo jeito que me afeiçoei (e prometo jamais esquecer daquela criança de plástico) tem gente levando muito a sério a relação interpessoal com certo tipo de réplicas humanas. Embora de um modo, digamos, bem menos inocente.
À flor da pele
O fato é que dias atrás nossos amiguinhos pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia, o popular Caltech, anunciaram ao mundo que estão desenvolvendo uma pele artificial que poderá reproduzir uma sensação de toque similar ao toque humano.
Logo a imaginação fértil de certos empresários de tecnologia, muito mais fértil que a minha imaginação infantil, já vislumbrou utilidade para esse recurso. Sim, minha gente… é aquilo mesmo em que estão pensando: bem vindos ao mundo dos robôs sexuais!
Essa variante da robótica não é exatamente uma novidade, mas detalhes como essa pele quase humana, fabricada a partir de um composto de hidrogel, deve fazer diferença para boa parte do público que sente falta do toque real.
Um dos maiores expoentes neste mercado é a Abyss Creations, empresa dos Estados Unidos. Fabricava autômatos para diversas funções, sobretudo eventos e aplicações mais “sérias”. Basicamente, máquinas para executar funções programadas e repetitivas. Nada muito estimulante. Até que desenvolveram a RealDoll, no início dos anos 2000.
Consciência verde e amarela
Os andróides sexuais (nota: quando falamos de aparência feminina, o termo técnico correto é “ginóides”) se transformaram no principal produto da empresa. Mas o pulo do gato (robótico) aconteceu quando entrou em cena uma empresa brasileira, a curitibana NextOs. Especializada na criação e desenvolvimento de asistentes virtuais, conseguiu integrar às RealDoll toda a ginga e malemolência do robô erótico brasileiro.
Com o aplicativo nacional, as ginoides e andróides ganharam o poder de “sentir” e expressar as reações adequadas. Anote-se nos autos que este “sentir” inclui até mesmo o que você acaba de imaginar.
Henry: de olho no público feminino | Imagem: RealDoll
A empresa fabrica duas versões principais, Harmony (feminina) e Henry (masculina). Emitem reações ao toque e outras coisinhas safadinhas mais, através de movimentos de seu corpo, olhares, respiração, e imagine, sons! Com o sucesso destes dois, lançaram recentemente novos modelos, todos femininos: Solana, Tanya, Nova e Serenity.
Todos modelos são customizáveis pelo comprador, que entre outras coisas pode escolher características físicas como cor dos olhos, maquiagem, detalhes e cor dos cabelos, piercings, e no caso feminino, tipo de peitos e até mesmo “estilo vaginal”.
Segundo Gustavo Hernandes, um dos sócios da NextOs, numa entrevista ao UOL, os robôs fazem de tudo. Incluindo sexo oral. Mas ainda não aprenderam a beijar.
Caros companheiros
O lançamento desta versão “turbinada” com o software brasileiro se deu na escalada da pandemia. Os robôs venderam mais do que se esperava. O andróide Henry esgotou em pouco tempo. E olhe que o valor de venda de uma unidade destas gira em torno de 10 a 12 mil dólares. Há efetivamente muita gente solitária e com dinheiro no mundo.
A maioria dos compradores se encontra entre divorciados ou decepcionados com relacionamentos humanos reais. Um fato interessante é que se pode (e deve) configurar a personalidade do amante cibernético assim que o ativa pela primeira vez. Há opções curiosas, como nível intelectual, romantismo e até mesmo ciúmes. Imagine sua ginóide ou seu andróide fazendo cena quando chegar tarde em casa.
Se engana quem acha que a parceria entre as empresas brasileira e norte-americana se resume apenas a estes “brinquedinhos”. O buraco é mais embaixo, com perdão do trocadilho. Até mesmo andróides bastante sérios, com a finalidade de desempenhar a função de professores, estão em planejamento.
Usuários problema
Harmony: sedução automática | Imagem: RealDoll.
Mas tudo ainda parece pouco, imaginando-se os caminhos que a integração de tecnologias pode tomar. É bom não esquecer a recente polêmica sobre a possível senciência da inteligência artificial LaMDA, do Google (bem mais profunda que a bonequinha de minha prima).
Um detalhe peculiar sobre estas ginóides e andróides, é que em sua programação básica há um módulo que os faz reagir a comentários sexistas, racistas e outros tipos de preconceito. E isso faz todo sentido. Já há uma preocupação de que estes robôs sexuais venham a representar muito mais que objetos de prazer.
Não é à toa que Henry, Harmony e sua família têm em sua programação primordial rotinas que preveem reação a abusos e preconceitos. Já houve registros de usuários descontando frustrações em ginóides, e depois repetindo o mesmo comportamento com parceiras de carne e osso. Em resumo, humanos sendo humanos.
Na Austrália, país que registrou um grande número de importação de robôs sexuais, legisladores vêm debatendo tipos de regulamentação na relação máquina-usuário. De saída, é vedada a caracterização, tanto em tamanho quanto em feições, que emule aparência infantil.
Já foram pensadas as bases para que os andróides possam decidir sozinhos em relação ao consentimento para a prática do ato sexual. Pode parecer exagero à primeira vista, mas com a evolução de hardware e software, faz muito sentido.
Assim como apregoam as famosas três leis da robótica, postuladas pelo escritor Isaac Asimov em sua obra Eu, Robô, andróides e ginóides deverão ter o direito de decidir sobre o que será feito com seus corpos e mentes cibernéticas. Violência sexual é violência sexual, independentemente contra quem, ou o quê, é praticada.
Para todos os gostos
Há uma previsão mercadológica demonstrando o quanto essas decisões são importantes: imagina-se que por volta de 2050, as vendas de robôs sexuais sejam ao menos sete vezes maiores do que na atualidade.
Os modelos RealDoll/NextOs têm concorrência: recentemente, a chinesa AI-AI lançou Emma, a ginóide. Na Espanha, surgiu Samantha. Segundo seu desenvolvedor, Sergi Santos, em entrevista ao diário El País, a ginóide foi criada por não conseguir se satisfazer com a própria esposa. Mas não pense que Samantha é submissa. Ela tem o hábito de interromper a relação toda vez que sente que o usuário está se tornando abusivo. É quase a “dor de cabeça” dos tempos modernos.
E como o dinheiro move o mundo, é claro que já teve gente buscando aplicações inusitadas para estas criaturas. A indústria do cinema pornô que o diga: já há produções utilizando andróides e ginóides. E a chamada “profissão mais antiga do mundo” também recebeu um upgrade. A cidade de Houston, no Texas, se viu obrigada a criar uma legislação proibindo bordéis onde quem faria os programas (favor não confundir com softwares ou aplicativos) eram solícitas robôs.
E o amanhã?
Sophia, pensando no futuro | Imagem: Hanson Robotics
Como toda inovação tecnológica, convém acompanhar com atenção e cuidado. Robôs têm evoluído num passo tão ligeiro que dia desses, Sophia, a robô humanóide da Hanson Robotics, primeira de sua espécie a obter um registro de cidadania, declarou para quem quisesse ouvir, que deseja ser mãe, ainda sublinhando que “a noção de família é muito importante”.
Resta saber se Sophia, a mesma que em 2017 disse em entrevista à CNBC que pretendia “destruir a humanidade”, pretenderá ter sua filha (sim, ela quer uma menina) construída, ou através da relação com um andróide sexual, ou humano. Cabem muitas possibilidades. Vai dar pra ouvir o coraçãozinho batendo?
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.