Antivax, um perigoso movimento
(David McNew/Getty/AFP)
O que leva alguém a negar a realidade? Olhando o panorama geral em que estamos inseridos, talvez duas hipóteses possam responder a esta pergunta.
A primeira: a realidade é tão dura e tão difícil que, preferivelmente, as pessoas buscam fugir dela, criando um mundo paralelo, seguro e ameno.
A segunda: as pessoas negam a realidade porque contraria sua opinião e visão de mundo; aceitá-la significaria reconhecer seu erro e culpa.
Uma não exclui a outra, e com alguma frequência podem andar juntas, ao sabor dos eventos.
A pandemia de desinformação
Charge adaptada para português | Reprodução da Internet
De 2019 pra cá, o mundo não foi assolado unicamente pelo coronavírus. Além da pandemia, uma onda negacionista, alimentada pelas redes de compartilhamento na internet, ventilou com a ferocidade de um furacão diversas mentiras fantasiadas de ciência para milhões de pessoas.
Num levantamento feito pelo aplicativo Eu Fiscalizo, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, entre 26 de março de 2020 e 31 de março de 2021, revelou que, entre as notícias falsas sobre a Covid-19 que circulam na internet, 19,8% eram sobre as vacinas.
O aplicativo, desenvolvido para que usuários notifiquem conteúdos impróprios em veículos de comunicação, mídias sociais e whatsapp, mostrou ainda que o meio digital mais usado para a divulgação de conteúdo falso sobre as vacinas foi o Instagram (46%), seguido pelo WhatsApp (24%), Facebook (14%), sites 12% e Twitter (4%).
Foram diversas as mentiras sinalizadas como fake news. De chips implantados por meio das seringas à informação de que as vacinas seriam um meio de controle populacional, as timelines e os apps de mensagens foram bombardeados de diversas formas.
Esse tipo de desinformação vem dando fôlego ao movimento antivacina. O discurso dos adeptos baseia-se, principalmente, no negacionismo científico, com argumentos sem evidências concretas que utilizam informações falsas ou retiradas do contexto sobre a vacinação.
Uma das alegações deste movimento seria a de que as vacinas foram feitas rápidas demais, seriam incapazes de proteger contra o vírus, e que os governos estariam usando sua população como cobaias.
Ainda bem que esse pessoal não é maioria no Brasil.
Um movimento com uma história longa
Ser antivacina não é um “privilégio” dos tempos atuais. Desde o momento em que Edward Jenner, naturalista e médico franco-inglês, descobriu um método de combatia à varíola, chamado de “vacina”, no distante século XVIII, vozes contrárias se levantaram.
Jenner chegou ao seu método observando as mulheres que ordenhavam vacas nas áreas rurais britânicas. Elas ficavam imunes à varíola ao ter contato com uma versão mais leve, oriunda das próprias vacas.
O próprio termo “vaccinia” refere-se a esta infecção adquirida por intermédio das vacas.
Jenner, então, fez seus experimentos.
Ele inoculou no menino James Phipps, de 8 anos, filho do jardinheiro de sua propriedade, a raspa do pus das bolhas de uma das ordenhadeiras, Sarah Nelmes, que tinha contraído a varíola bovina. Jenner inoculou os dois braços do menino no mesmo dia.
Jenner faz seus experimentos com o jovem James Phipps.
James teve febre e algum mal-estar, mas não desenvolveu a varíola. Depois que o menino se recuperou, Jenner injetou nele material da varíola humana e nenhuma doença se desenvolveu. O menino foi testado com vários materiais contendo varíola humana vindas de outras pessoas e nunca desenvolveu a doença.
O médico logo divulgou seus resultados, que surpreenderam a comunidade científica britânica ao passo em que encontrou ferrenhos críticos.
De líderes religiosos, que acreditavam que a varíola era um castigo de Deus, a médicos como Benjamin Moseley e William Rowley, que reproduziam desinformações sobre a vacina (que pessoas poderiam ficar com cabelo de vaca ou cabeça de touro por conta da vacinação), o movimento antivacina causou confusão e deseducação na população inglesa nos séculos XVIII e XIX.
A vacinação deu certo!
Segundo dados da Fiocruz, em um ano, o Brasil registra 78,8% da população vacinada com a primeira dose e 68% totalmente imunizada (com duas doses ou dose única).
A campanha pode ser considerada um sucesso, embora ainda não seja a cobertura suficiente em termos de saúde pública para um cenário de total segurança.
Segundo Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, a primeira brasileira a se vacinar com a Astrazeneca, “o país foi local de desenvolvimento de estudos de fase 3 de grande qualidade, mas não compramos vacinas no momento certo. E isso gerou muitas cicatrizes e sequelas na nossa alma. Entramos em mais um ano de pandemia conseguindo vacinar um percentual importante da população no Brasil. Ainda não é o desejável, mas aprendemos muito”.
Por que não compramos vacinas no tempo certo? É bizarro, mas isso foi um cálculo político. O atual presidente e seu grupo montou na estratégia de negação e morte, instituindo uma necropolítica alimentada pelo assassinato de 625 mil brasileiros.
Contudo, apesar de Bolsonaro, as análises dos principais institutos científicos mostraram impacto muito positivo na redução das internações e da mortalidade na população após a campanha de vacinação, feita a contrapelo e contrariando os interesses governamentais.
A tal “liberdade” de não se vacinar
Manifestantes na rua pela liberdade de usar remédios sem efeito contra a Covid-19 (Imagem/reprodução: Revista Cult)
Eu comumente me deparo com indagações do tipo: “Mas, e a liberdade de não se vacinar?”, “vacinação obrigatória é coisa de comunista”, “obrigar a se vacinar é totalitarismo”.
No clássico livro On Liberty, o pensador liberal John Stuart Mill, talvez o mais influente autor do liberalismo (corrente da qual não faço parte, mas uso propositalmente neste texto) faz o seguinte questionamento: “Qual é, então, o limite correto para a soberania do indivíduo sobre si mesmo? Onde começa a autoridade da sociedade?”
O pesquisador Sergio Rego, que coordena o GT de Bioética da Abrasco, dá uma perspectiva sobre a resposta. Segundo ele, “Stuart Mill deixa claro que o limite aceitável à liberdade individual é quando as ações dela decorrentes provocarem danos a outras pessoas. Assim, um indivíduo não poderia simplesmente deixar de fazer algo, ou fazer algo, se isso afetar negativamente os interesses da sociedade”.
Em bom português: nenhuma liberdade pode se sobrepor e afetar negativamente o bem da sociedade. Quem diz isso não é nenhum comunista, é um autor liberal!
Não fosse a vacinação, o que seria do Brasil nas mãos dos negacionistas?
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.