Aquela em que não se consegue pronunciar o nome
O terror do telemarketing, abominação da lista de chamada e aflição dos desconhecidos tem nome: Haydée. Haydée tem 95 anos, 3 filhos, 4 netos e duas bisnetas. Ela nasceu em 1926, mesmo ano da televisão e da rainha Elizabeth. Ela veio ao mundo antes da copa do mundo (1930), do fax (1929) e do sucesso da Marylin Monroe (1944).
Não bastasse o nome peculiar (emprestado do romance O Conde de Monte Cristo), o sotaque que, lembra o carioca, denuncia que ela não é 100% nacional. Ainda que tenha nascido no Brasil, é filha de portugueses que voltaram à terra natal para morar em uma aldeia (cidade pequena) nos arredores de Lisboa. Viu Salazar, Hitler, Franco e Stalin subirem ao poder e trazerem morte por todo continente europeu.
Em uma época que as mulheres não estudavam e tinham quase como único projeto de vida casar, Haydée se formou professora de matemática e saiu debaixo das asas dos pais para ensinar em escolas por toda Portugal. Já casada com Virgilio Almeida, Haydée e família voltaram ao Brasil e aqui conviveram com 14 presidentes; 6 ditadores; 21 técnicos da seleção brasileira de futebol.
Haydée é corinthiana em homenagem ao filho que o mar levou, mas gosta do Palmeiras porque tem um neto que costuma sofrer nos dias de jogo. A gentileza nunca foi retribuída, pelo contrário, ele é praticante confesso de schadenfreude. Ela foi dona de uma escola, detesta preguiça, nunca recusa doces ou vinho do porto, afinal "um pouco de veneno não faz mal". Além disso, para o bem, e para o mal, é bastante firme nas próprias convicções.
Haydée já viveu 34.310 dias, 823.440 horas e inúmeras histórias. Até hoje tem saúde invejável e gosta de passar o tempo assistindo Netflix. Depois de tudo que viveu e de tudo que errou ainda tem que ouvir gente dizer que "o covid não é tudo isso, só mata velho". Como se ela (a vida) fosse descartável.
Gente que pensa que ela (Haydée) perde valor à medida que envelhece, quando a impressão é justamente do contrário.
Imagem de capa - Sem filtro igual a dona Haydée - Daniel Manzano
Este artigo foi escrito por Daniel Manzano e publicado originalmente em Prensa.li.