Aqui jaz um coração: Moïse Kabagambe
Charge de Cris Vector.
O Brasil é uma mãe
O vídeo gravado possui em torno de 3 horas de duração e se passa nos fundos de um bar. Nele, vemos, no início, um homem jovem, negro, camisa regata, discutindo com outro homem, também negro, com camisa de mangas compridas.
Após ameaças entre os dois com cadeiras e paus, o jovem negro tira a camisa, abre o freezer e, ato contínuo, é empurrado e imobilizado por outros dois homens. Um deles prende o rapaz com uma chave de pernas no pescoço, enquanto outros revezam em bater com um pedaço de pau em seu corpo. Testemunhas vêem tudo isso e nada fazem.
Por um longo tempo, a chave de pernas o asfixia. Tanto que é nela que o rapaz se despede da vida.
Quando os agressores vão se dar conta do que havia acontecido, após uma série de pauladas no corpo do jovem, que não reage mais, já era tarde. Amarrado, jogado ao chão como um indigente, sem respiração, o corpo é visto por diversas pessoas com uma indiferença brutal.
Em um certo ponto, uma família inteira passa ao lado do já sem vida Moïse Kabagambe (congolês de 24 anos, a vítima deste caso) e simplesmente o ignoram.
Quando os profissionais da Samu chegam, no fim do vídeo, o ritual macabro da indiferença moral já acontecia há horas. Clientes continuavam consumindo; o funcionário cúmplice do ato brutal abria e fechava os freezers, servindo pessoas; pedestres iam e vinham nas calçadas.
Em quase meia hora, os paramédicos tentam reanimar o corpo sem vida de Moïse. Impossível. Ele já estava morto.
Ligo a TV e vejo Chadrac Kembilu Nkusu, primo do rapaz. Ele chora e diz para a câmera: “O Brasil é uma mãe, abraça todo mundo”.
A mãe talvez abrace todos e todas. O problema são seus filhos.
Indiferença moral
Há uma construção idílica, reverberada em diversos cantos do mundo e retroalimentada por parte dos brasileiros, de que somos cordiais, carinhosos, calorosos, afetuosos… Sem distinções de raça, cor, etnia, classe social.
Esse mito corre pelas ruas do país, envolve o senso comum e já foi discurso hegemônico entre os acadêmicos mais proeminentes (vide Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda).
Contudo, casos como o de Moïse revelam uma “doença” comum que aflige o brasileiro médio: a indiferença moral, capaz de tornar normal o estado de violência, comum a barbárie, e justificada a morte de alguém.
Não é um privilégio unicamente brasileiro. A indiferença moral diante da violência é compreendida como um grave problema ao longo da história.
Em “Modernidade e Holocausto”, Bauman cita três condições da indiferença moral:
(1) a violência passa a ser autorizada por instituições e pelo próprio Estado;
(2) a desumanização das vítimas da violência por questões ideológicas;
(3) o disciplinamento que suprime a própria identidade (auto sacrifício).
Nessa obra, o sociólogo polonês faz uma reflexão sobre o modo como a apropriação da indiferença moral pelo regime nazista se operou com a utilização de um complexo aparato da indústria, transporte, ciência, burocracia e tecnologia.
Ou seja, há um fundamento primordial que constrói a indiferença moral, que é o discurso. Como uma arma, o discurso (ou seja, uma narrativa ideológica com poder de mobilização das massas) pode alimentar a indiferença moral.
E há sempre um alvo: os indesejados, os diferentes, os incômodos, os inferiores, os degenerados. Todas as identidades que fogem ao padrão “normal” aceito pela sociedade sofrem com a indiferença moral, que os desumaniza e legitima a violência praticada contra seus corpos.
Moïse era um refugiado da guerra civil do Congo. Fugiu de um conflito em que a morte poderia ser uma realidade, mas a encontrou nos braços da mãe Brasil.
Xenofobia tem cor e etnia
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), xenofobia pode ser compreendida como “atitudes, preconceitos e comportamentos que rejeitam, excluem e frequentemente difamam pessoas, com base na percepção de que eles são estranhos ou estrangeiros à comunidade, sociedade ou identidade nacional”.
Contudo, há uns mais estranhos que outros. A xenofobia é seletiva, e seus critérios podem ser muito bem identificados: raça, gênero e classe.
No Brasil, a violência contra o outro tem como base a ideologia de que brancos estrangeiros são respeitáveis e não brancos são “raças perigosas”. Essa construção é histórica, e tem pilares bem fincados em nosso passado escravocrata e colonialista.
Foram 338 anos de uma escravatura que sequestrou, prendeu e explorou povos negros e indígenas, desumanizando-os ao mesmo tempo em que os temia.
Passado e presente se encontram no assassinato de Moïse, mas continuam em diversos outros.
Toni Bernardo, estudante, vindo da Guiné Bissau, foi espancado até a morte em 2011 por três pessoas, das quais duas eram policiais militares, em Cuiabá. O crime: ter supostamente esbarrado na namorada de um dos criminosos. Todos foram absolvidos. Na sentença dizia o seguinte: “A vítima foi o agente provocador dos fatos”.
Três angolanos, em 2015, reagiram a insultos de um grupo de brasileiros que os chamavam de macacos. Um conflito aconteceu e os brasileiros chamaram policiais que espancaram violentamente os imigrantes.
Último caso, ano de 2015: haitianos saíam de um culto na Paróquia Nossa Senhora da Paz, em São Paulo. Um carro os interpelou e disparou balas de chumbinho. Cinco pessoas saíram feridas.
Africanos e latinoamericanos estão na lista da sociedade brasileira dos indivíduos alvos da indiferença moral. Enquanto o branco europeu/norte-americano é turista, intercambista, estudante, viajante; o africano/latino é o mendigo, vagabundo, traficante, perigoso. Moïse.
Ele só queria receber o dinheiro por seu trabalho.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.