Areia movediça
Fotos: Pixabay
Quem já se mudou sabe que essa é a hora da verdade para os acumuladores involuntários. Tudo e mais um pouco que guardamos vem à tona e vira a esfinge do Egito: “decifra-me ou te devoro”. Isto é, “decida logo o meu destino: descarte ou casa nova”. Procrastinadores de todo o mundo, unidos em tal dramática hora, olham para trás e só veem um precipício. Não dá mais pra fugir da decisão.
Isso quando não descobrimos que ainda temos muitas coisas que se contavam como perdidas. No meu caso, DVDs e CDs implorando misericórdia em tempos de streaming. Guardei vários por valor sentimental, enquanto outros foram doados a um vendedor de rua que converterá (espero) tais achados em moeda local.
Mas a questão não me parece tão simples. E qual o principal motivo para me desfazer da maioria deles? “Está tudo na internet”, como pincelado no parágrafo anterior. E então sossego, pois sei que sempre terei aquele conteúdo todo ao meu alcance em alguma plataforma.
Será?
Uma nova “eletricidade” (mas nem tanto)
Foi o professor Silvio Meira, cientista e futurista, quem afirmou certa vez que a internet é a nova eletricidade. Não vivemos sem ela, e se por acaso há uma queda de luz ou um apagão, mantemo-nos relativamente calmos. Em algum momento, a eletricidade vai voltar, a realidade é inconcebível com sua ausência. Assim já é com o 4G ou 5G da operadora, bem como o sacrossanto wi-fi.
Queremos ver um filme, uma série? Ouvir aquele álbum clássico ou uma playlist sob demanda? Escolha uma das plataformas e pague por elas. É imperativo categórico de nosso mundo: não existe almoço grátis. Nem café da manhã, cafezinho, brunch, lanche da tarde, janta, ceia, nada. Paga-se literalmente, assinando o serviço; em caso contrário, sendo irritantemente interrompidos por anúncios; e, em ambos casos, com nossos preciosos dados de usuário.
Até agora falo de lazer. Mas e todas as nuvens e ferramentas virtuais cujo uso não é apenas pessoal, como também profissional? E aquele vídeo utilizado em aula que está online até… até quando? Melhor fazer o download, pra garantir. E aí está o ponto revelador de nossa insegurança.
Os objetos que ocupavam nossas casas, como os DVDs, CDs, eram uma segurança, um ponto de esteio (o download vai nessa direção). Estavam em nossas mãos e, assim como nas plataformas, à disposição para viver sob demanda. Mas sem intervalos comerciais! Despojar-me de tais objetos me traz a sensação de Fausto diante de Mefistófeles: pela conveniência de tudo online e acessível via internet, vendi minha alma às corporações de mídia.
A revolução não será renderizada
Sim, foram gravadoras, estúdios e distribuidoras que produziram todos aqueles DVDs e CDs que adquiri ou ganhei um dia. Contudo, uma vez em meu poder, meu era o poder. Se quero assistir “O auto da Compadecida” pela milésima vez? Ninguém pode me julgar ou impedir (a não ser o fato de estar momentaneamente sem aparelho de DVD, mas deixa quieto).
Agora, se certo dia qualquer um daqueles títulos sumir das plataformas, por obra e graça das próprias, o que poderei dizer? Qualquer protesto será imediatamente silenciado com um Termo de Uso todo assinado e jamais lido. O que não anula minha reflexão e nem suspende minha preocupação.
Olho para meus DVDs na estante como quem se depara com tribos indígenas nunca alcançadas pelo homem branco. E ainda resolvo que serão como os últimos combatentes da Guerra de Canudos, maltrapilhos e ainda assim orgulhosos de terem dado uma canseira ao numeroso exército imperial brasileiro.
Nostálgico? Retrógrado? Ludita? Podem me xingar à vontade. Temos motivos de sobra pra desconfiar e nos revoltarmos contra essas corporações. Somos Cinderella, encantados com o baile no palácio tecnológico. Mas ela ainda tinha uma vantagem sobre nós: ao menos sabia a hora em que a carruagem viraria abóbora.
Este artigo foi escrito por Marcos André Lessa e publicado originalmente em Prensa.li.