As armas e os plebeus eliminados
Vem de longe, atravessa um oceano, chega na outra costa com amigos, família, é preciso se virar. Diferente dos estudantes de intercâmbio que topam subempregos porque sabem ser temporário (e que podem voltar para o conforto de casa a qualquer momento), ele não tem opção de assim pensar. Precisa aceitar o que aparece, senão rua, fome, desespero.
O Rio de Janeiro continua lindo, veja só essa praia, essa gente bacana, esse quiosque com uma oportunidade. É por esse que ele vai, depois de tanto tentar em tantas coisas. Vai ajudar no preparo do que os outros que jamais estarão em seu lugar vão comer.
Não há nada formalizado entre ele e o patrão. Um acordo de boca, “no fio de bigode”, com diárias sendo pagas conforme o prometido. E essa palavra vai fiar tudo.
Ele não tem carteira assinada, férias, décimo-terceiro, licença-saúde, licença-paternidade. Desde novembro de 2017 a reforma trabalhista facilitou que esses direitos básicos fossem descartados por donos e empregadores. Precisa aceitar o que aparece, senão, rua, fome, desespero.
Não sei sabe o que ouve enquanto em país estranho a si. O que falam todas aquelas pessoas que não passarão pelas mesmas preocupações? Pessoas que, se ele não estivesse identificado como “funcionário” local, teriam uma atitude completamente diferente para com ele. O que não fazem questão sequer de disfarçar.
A maré sobe
Então chega o dia em que a noite chega e a diária, não. Rompeu-se o acordo, um dinheiro com o qual ele contava pra tantas coisas. Mas amanhã, ninguém sabe, quem sabe?
O amanhã veio e se foi, ele na labuta. E nada. Apelar pra quem? Não há vínculo empregatício, não há seguro-desemprego, não há como procurar a Justiça do Trabalho. Desamparado, mas agora é lei. Quem havia prometido, fechado o acordo, sente-se à vontade para ignorá-lo. Amparado pela terra com lei.
Quando o desespero aumenta, dá as mãos à indignação e mergulha na sopa da raiva. Ele quer o que lhe é de direito, ainda que informal, posto que frágil. O salário vem na moeda da violência em diversas camadas.
“Esta cova que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida”. Se perguntássemos a João Cabral de Melo Neto se ele gostaria que a temática de sua poesia fosse atemporal, certeza que a resposta seria negativa. No entanto, é. Teimosamente, é.
Não está mais na rua, não sente mais fome, deixou de herança aos seus o desespero. E a esperança que reergamos as pontes queimadas da dignidade de um ser humano.
Este artigo foi escrito por Marcos André Lessa e publicado originalmente em Prensa.li.