As Muitas Mortes de Marcelo Arruda
Nove de julho de 2022 era para ser uma noite comum em Foz do Iguaçu, Paraná. Marcelo Arruda, tesoureiro do PT, comemorava seu aniversário com a família e amigos... quando foi covarde e brutalmente assassinado pelo bolsonarista Jorge Guaranho. Marcelo, que era guarda municipal, havia escolhido o Partido dos Trabalhadores e o ex-presidente Lula como tema de sua festa na Associação Recreativa Esportiva Segurança Física (Aresf).
Jorge teria chegado sem ser convidado, estacionado seu carro em frente ao local da festa e colocado uma música alta em alusão ao atual presidente Jair Bolsonaro, dirigindo insultos contra Lula e o Partidos dos trabalhadores. Segundo testemunhas, Jorge estava acompanhado da esposa e da filha pequena. Marcelo saiu com alguns convidados e se iniciou uma troca de ofensas. Jorge ameaçou Marcelo com uma arma e disse em alto e bom som que iria matar todos ali presentes. O aniversariante revidou atirando terra contra seu carro e se escondendo para se proteger. O bolsonarista foi embora prometendo se vingar.
Jorge Guaranho é um policial penal e não conhecia Marcelo nem ninguém na festa. Publicamente entusiasta do presidente Jair Bolsonaro, tem em suas redes sociais várias publicações com viés de direita, gestos e apologia ao uso de armas, além de uma foto ao lado de Eduardo Bolsonaro, filho do mandatário do país. A esposa do policial penal afirmaria mais tarde que ele estava “fazendo uma ronda” perto do local quando descobriu a existência da festa com temática petista.
Acontece que policiais penais – antigamente conhecidos como carcereiros - trabalham apenas dentro de unidades prisionais, não fazendo rondas na rua. E nenhuma testemunha jamais havia visto o marido dela fazenda nenhuma ronda no local antes. Na verdade, outras testemunhas alegaram que Jorge Guaranho estava com a família em um churrasco e foi ali que ficou sabendo da festa de aniversário com decoração do PT, partido que abominava.
Todos os convidados estavam incrédulos. Mas se recusavam a acreditar que aquele homem voltaria. E ele voltou horas depois. Aos gritos de “É Bolsonaro!” Jorge adentrou o recinto atirando contra Marcelo. A esposa de Marcelo, Pamela Silva, é policial civil e tentou fazer Jorge parar mostrando seu distintivo. Em vão. Ele baleou o marido dela de forma covarde, perto do bolo de aniversário de Marcelo. O criminoso se aproximou da vítima caída no chão para executá-lo quando Pamela se atirou contra Jorge, o desiquilibrando. Com isso, Marcelo usou suas últimas forças para reagir e alvejar Jorge. O policial penal tentou fugir, mas caiu ao ser atingido pelos tiros do guarda municipal.
Toda esta situação absurda foi flagrada pelas câmeras da Aresf. Marcelo Arruda faleceu pouco depois. Em plena sua festa de aniversário. Caiu atirando, como se diz. Morreu como herói, pois é impossível prever quantas vítimas mais Jorge faria após matá-lo.
Infelizmente, essa não foi a única morte do petista.
No primeiro boletim para a imprensa a polícia civil informou que Jorge Guaranho também havia morrido após a troca de tiros. Somente horas depois, na tarde do domingo, 10 de julho, a delegada Iane Cardoso afirmou publicamente que o policial penal não havia morrido. Na verdade, apesar de muito ferido, o bolsonarista se encontrava estável e internado no Hospital Municipal Padre Germano Lauck em Foz do Iguaçu. Ou seja, durante metade de um dia o assassino foi dado como morto sem estar morto.
Isso também significa que, durante um longo tempo, todos os veículos de comunicação trataram a vítima como um assassino. A tentativa de criminalização póstuma de Marcelo Arruda foi seu segundo assassinato.
Como é possível que os médicos que socorreram Marcelo e Jorge não soubessem identificar se Jorge estava vivo ou morto? E, se soubessem, como é possível que tenham ocultado uma informação tão relevante da polícia? A resposta é óbvia. Os médicos informaram que Marcelo estava morto, mas Jorge estava vivo. Informaram a polícia. E a polícia mentiu para o público. Resta-nos especular o porquê.
Como o policial penal estava em estado grave é muito provável que existisse a possibilidade de ele vir a óbito logo após ser socorrido. Se isso tivesse acontecido as redes bolsonaristas na internet teriam uma desculpa para transformar Marcelo em vilão da história por ter reagido em legítima defesa de sua vida e de outros e ferido Jorge.
Não há como se saber se isso de fato ocorreu, mas chama a atenção o fato que a delegada Iana Cardoso foi afastada do caso no dia seguinte, 10 de julho. Em seu lugar assumiu a delegada Camilla Decconello da divisão de homicídios. Também foram descobertas em suas redes sociais publicações de Iana contra o Partido dos Trabalhadores, que despertaram revolta em muitas pessoas. Porém, oficialmente, a Secretaria de Segurança do Paraná afirmou que o caso foi repassado para a divisão de homicídios pois esta “teria mais recursos e experiência para a situação”.
Tudo parecia normal então. Um crime de ódio fora cometido diante de câmeras e inúmeras testemunhas, com o criminoso verbalizando as motivações políticas do seu gesto homicida e hediondo. Ele já estaria identificado e preso. Bastaria apenas a população brasileira, chocada com o ocorrido, aguardar a ação da polícia e da Justiça. Eis que, então, no dia 15 de julho a nova delegada Camila Decconello vem a público afirmar que o que ocorreu foi um crime comum, não um crime com motivação política.
Ela reconhece que Jorge chegou a festa para onde não fora convidado por motivação política, começou a discutir com Marcelo e os convidados por motivação política, ameaçou matar todos no local por motivação política, mas não puxou o gatilho por motivação política.
E Marcelo Arruda morreu novamente mais um pouco nesse dia, quando lhe foi negada a justiça por sua morte. Luiz Fernando Pacheco, advogado da família de Marcelo, acusou a delegada de ser uma “terraplanista” (pessoas que acreditam que o Planeta Terra é plano ao invés de redondo). Ele afirmou:
“Essa delegada é uma negacionista. Uma terraplanista. Se o tema da festa não fosse o PT, o fato não teria ocorrido. A postura da polícia é um incentivo ao crime de ódio. Isso é grave”
Segundo Camila Decconello, o crime político ocorreria quando alguém impede o outro de exercer seus direitos políticos. Pacheco retrucou:
“O sujeito matou o outro! Quer mais do que isso? Morto exercita direito político?”
Em meio a perplexidade generalizada, o caso ganhou mais um episódio trágico que novamente chocou as pessoas. No dia 17 de julho o vigilante Claudinei Coco Esquarcini foi encontrado morto. Claudinei era um dos diretores da Aresf, onde o crime ocorreu e, de acordo com a Polícia Civil de Foz do Iguaçu, cometeu suicídio ao se atirar de um viaduto na BR-277.
Segundo relatos em redes sociais ainda não confirmados, ele seria o responsável pelas câmeras de segurança da Associação e teria sido por seu intermédio que Guaranho, descobriu sobre a festa de Marcelo com temática petista. A Polícia Civil ainda está apurando se há ligação entre o suicídio do vigilante e o assassinato do tesoureiro do PT. O promotor Thiago Lisboa pediu que o celular de Claudinei também fosse periciado, assim como já ocorrera com o celular do policial penal que cometeu o crime.
Contrariando o parecer da delegada Camilla Decconello, no dia 20 de julho os promotores Tiago Lisboa Mendonça e Luís Marcelo Mafra Bernardes da Silva, do Ministério Público do Paraná, apresentaram denúncia contra Guaranho alegando que o crime teve “motivação fútil por preferências político-partidárias antagônicas”. Mafra ainda disse:
“Esperamos que esse caso emblemático do Marcelo Arruda sirva de freio de arrumação para essa escalada da violência que o nosso país tem vivenciado no espectro político-partidário. Nós precisamos parar com isso”
Mas a família e amigos de Marcelo ainda teriam mais um desgosto logo depois, desta vez vindo da imprensa.
Durante a campanha presidencial de 2018, o então candidato a presidente Jair Bolsonaro pegou um tripé simulando uma arma e disse para uma multidão ensandecida no Acre que iria “fuzilar a petralhada”. Após Guaranho, um apoiador de Bolsonaro, interpretar literalmente o que seu líder dissera durante o crime de Foz do Iguaçu, a professora da Fundação Getúlio Vargas Clarissa Piterman Gross isentou Jair Bolsonaro de responsabilidade no ocorrido em sua coluna na Folha de São Paulo, ao afirmar que “fuzilar a petralhada” era fala tosca, mas não discurso de ódio:
“Há razões para entender que a fala não foi literal. É uma fala grosseira, tosca, ignorante. É triste que tenhamos como presidente uma pessoa que se coloque no debate político de forma tão ríspida e violenta. Mas não me parece que naquele contexto o presidente estava afirmando que os militantes do PT não deveriam ter direitos protegidos de forma igualitária. Assim, não me parece que, naquele contexto, o discurso configura discurso de ódio.
Também não me parece que, naquele contexto, o discurso significava incitação ao crime justamente porque o sentido não era o de defender a prática de crimes contra militantes do PT. Isso não significa que, em um outro cenário social e político, em outro contexto, uma frase como essa não poderia significar incitação ao crime”
E assim Marcelo Arruda morria mais uma vez nas palavras da professora. O mesmo discurso distorcido empregado por ela para praticar condescendência com o discurso de ódio do presidente Bolsonaro poderia ser empregado para livrar de responsabilidade Daniel Silveira, que ameaçou ministros do Supremo Tribunal, ou Ivan Rejane Fonte Boa Pinto, que ameaçou os ministros e o ex-presidente Lula. Só que ambos foram exemplarmente punidos.
O mais curioso, porém, é que Clarissa Gross parece ter mudado de ideia. Ou então, simplesmente caiu em contradição. Porque em novembro de 2020 a mesma Clarissa Piterman Gross publicou um texto no site Nexo Jornal intitulado “O que é discurso de ódio”, onde ela afirma que:
“O discurso de ódio, como limite da liberdade de expressão, diz respeito a um discurso muito específico e ele tem três características principais. A primeira delas é que ele é um discurso de conteúdo discriminatório, a segunda delas é que é um discurso que se dirige a um grupo em geral de pessoas e a terceira delas é que é um discurso que é proferido no debate público de ideias”
Ora, não foi exatamente isso o que Jair Bolsonaro fez naquele dia no Acre? Não discriminou petistas, não se dirigiu a um grupo em geral e não proferiu suas palavras de ódio em meio a um debate público? Por qual razão então Clarissa Gross reclassificou o discurso de ódio de Bolsonaro como “fala tosca”? Por que o caso de Marcelo era tratado de modo diferente? Como se ele fosse um cidadão de segunda categoria e o teor de crime de ódio não fosse digno de ser aplicado porque a vítima era um guarda municipal.
Por que parece que tanta gente está mais preocupada em desvincular a imagem do presidente do crime político praticado por Jorge Guaranho contra Marcelo Arruda? Ou tentando modificar a natureza do crime de ódio de Guaranho? Ou tentando criminalizar Marcelo? Uma vez que tudo está documentado e filmado, que há inúmeras testemunhas contando o que realmente ocorreu, toda a energia dos envolvidos não deveria estar direcionada na solução desse crime político e na responsabilização dos envolvidos, sejam eles quem forem?
A recorrente tentativa de homicídio da memória de Marcelo Arruda ainda ganharia um novo capítulo. Em 10 de agosto o Complexo Médico Penal (CMP) informou ao Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná (Deppen) que não tinha estrutura para receber o bolsonarista. Dias depois, após os médicos darem alta para o assassino, o juiz Gustavo Germano Francisco Arguello decidiu que Jorge Guaranho iria para casa e não para o presídio, pois precisava de cuidados médicos necessários em uma prisão domiciliar.
Houve uma intensa repercussão negativa. O filho de Marcelo, Leonardo Miranda de Arruda, declarou publicamente seu repúdio pela decisão:
"Através dessa nota, manifesto meu total desapontamento com a justiça, as autoridades envolvidas e o Governo do Estado do Paraná. Neste dia 10 de agosto, 1 mês do assassinato de meu pai, Marcelo Arruda, o Governo não se mostra preparado para receber um ‘preso’ em uma Clínica Médica Penitenciária por não conseguir oferecer estrutura suficiente e através do Juiz responsável permitindo a prisão domiciliar. Após ter cometido tamanha barbárie e acabado com a vida de um pai de família, o assassino ficará em casa, aproveitando o dia dos pais com seu filho, se ‘recuperando’. E eu? E nós, filhos de Marcelo? Seguimos em busca de Paz e Justiça, por Marcelo Arruda!"
No dia 12 de agosto, após intervenção da Secretaria de Segurança Pública, que enviou recursos materiais e humanos ao presídio, o juiz Arguello revogou sua decisão e enviou Jorge Guaranho para o Complexo Médico Penal. No despacho, ele agora afirmava que o Complexo Penal “possui condições de garantir a manutenção diária das necessidades básicas do custodiado com supervisão contínua”.
Após todos estes eventos atípicos no tratamento a um crime hediondo, que mais revitimizaram Marcelo Arruda do que qualquer outra coisa, a sociedade espera uma resposta. O Brasil aguarda que a Justiça seja feita. E que algo assim nunca mais aconteça.
Marcelo Arruda não foi apenas violentamente arrancado de sua família e amigos. Foi “condenado à morte” por exercer seus direitos como cidadão garantidos pela Constituição de 1988, Artigo 5, parágrafos XVI e XVII, os mesmos que Jorge Guaranho desrespeitou em sua motivação homicida e egoísta de adulação a um líder que venera as armas e a morte:
XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
O resgate dos princípios constitucionais que norteiam a nação brasileira desde a redemocratização passa obrigatoriamente pelo processo de trazer justiça a Marcelo Arruda.
Este artigo foi escrito por Guilherme Cunha e publicado originalmente em Prensa.li.