As We See It: a série com autistas interpretando autistas
Imagem: divulgação/Prime Vídeo
O Prime Vídeo, da Amazon, tem forte tradição em quase não divulgar seus lançamentos. Por pura sorte, minha esposa abriu o aplicativo e se deparou com Nosso Jeito de Ser (As We See It), lançada na plataforma em janeiro.
Resultado: Maratonamos os oito episódios em um final de semana.
Se você tem algum grau de convivência com pessoas que estão no espectro autista, já deve ter ouvido reclamações de que praticamente não existe conteúdo sobre autistas adultos, nem mesmo fora da ficção.
Se não tem essa convivência, assistir Nosso Jeito de Ser é uma ótima forma de ter um primeiro contato bem realista com jovens adultos neurodiversos.
A premissa é simples, três pessoas com vinte e poucos anos dividem um apartamento, além das alegrias e tristezas em suas vidas cotidianas. Nada que você já não tenha cansado de ver, é até meio Friends, se reduzir a série inteira apenas a isso. O diferencial aqui, mais que os protagonistas serem interpretados por pessoas neurodivergentes, é o assustador grau de realismo.
Diferente de Atypical, a leve e mais adolescente série sobre um jovem autista da Netflix, em As We See It, as coisas podem dar errado pra valer. Com consequências que nem sempre conseguem ser revertidas.
Nosso Jeito de Ser acompanha a vida de três autistas e uma neurotípica que, honestamente, ganhou destaque demais na série. Violet, Jack e Harrison são três jovens com idade média de 25 anos que moram juntos e dividem, além do aluguel, a terapeuta Mandy, que os acompanha diariamente na jornada por mais autonomia. Não que a vida esteja exatamente boa para eles, mas cada um terá de se superar apenas para continuar com a vida.
Talvez alguém possa estranhar, mas se eu te apresentar os protagonistas antes, você pode começar a série já gostando deles e tudo fluirá com mais tranquilidade, então vamos a um pequeno resumo sobre eles:
Violet e sua idealização das relações
Violet sonha em ser “normal” com todas as ilusões e promessas que possam existir para esse termo. A personagem interpretada por Sue Ann Pien quer que sua vida seja como a dos outros, mas não a dos outros que ela ou você conhece, para Violet Wu, a vida deve ser algo entre uma sitcom e uma revista Marie Claire (para comparação local).
Ela quer um emprego mais normal que trabalhar em um fastfood e ela, definitivamente, quer namorar um cara “normal”. A questão é que ela nunca teve nem um ficante e projeta a relação detalhadamente, do momento do primeiro beijo a com quantos encontros vai querer ter sua primeira relação sexual.
Todos merecem o amor, mas primeiro ela vai ter que descobrir o que é o amor e o que não é. (imagem: Divulgação/Prime Video)
Some isso a dificuldade que Violet tem de decifrar a intencionalidade das pessoas e temos a garantia de que mais dia, menos dia, vai dar ruim pra ela. Violet, certamente a pessoa mais meiga da série, contudo seu mundo tem menos cores que o de alguém daltônico. Se você disser “depois a gente marca”, ela vai esperar, e quando nada for marcado, ela expressará os mais pesados sentimentos que conseguir.
Violet tem um irmão chamado Van, que apesar da pouca diferença de idade, teve que assumir as responsabilidades de cuidar da irmã após o falecimento dos pais. O conflito entre ambos é constante e levanta boas discussões. Você vai querer abraçá-la, depois vai querer ficar bem longe dela e em pouco tempo vai querer abraçá-la novamente. Violet é complicada, mas quem não é?
Jack e sua superioridade intelectual
Rick Glassman dá vida e muita inteligência ao personagem Jack, pena que não sobrou espaço para nem um grama de consideração ao próximo. Jack é extremamente inteligente, tem respostas rápidas para tudo e manda muito bem na hora de programar na frente do computador. Infelizmente, ele não foi esperto o bastante para considerar que, talvez não seja a melhor das ideias dizer no meio de uma importante reunião, que se seu chefe não entendeu seu projeto porque ele é burro.
E não foi baixinho para um colega, foi na cara do próprio chefe.
Jack instrumentaliza suas relações com base em suas necessidades, ele reduz o próximo a como ele pode ser útil para sua própria vidinha, e nem o faz por mal. Mesmo ao receber a notícia de que seu pai não está bem de saúde, primeiro ele pensa em como isso pode afetar sua vida, para só depois, bem depois, pensar como isso afeta seu próprio pai.
Em um primeiro momento ele parece ser o mais adulto dos três, mas na verdade ele é quem aposta mais, age no impulso e fica muito perdido quando seus planos perfeitos não dão certo. Jack é um cara muito racional, que sempre busca uma razão, estando ela ali ou não. É muito interessante perceber que suas emoções estão ali, mas que ele as congela para sentir depois, preferencialmente sozinho.
Senhoras e senhores, Jack Hoffman, uma máquina de sincericídios. (imagem: Divulgação/Prime Video)
Jack não se ilude como Violet nem tenta dar um jeitinho nas coisas como Harrison. Se tivesse que sintetizá-lo em um jargão, seria “a verdade dói”. Ele repele e magoa quem está ao seu redor de forma indiscriminada sem fazer nada além de constatar e contestar todas as verdades possíveis, especialmente as que não precisavam ser ditas.
Entre aprender quando é melhor não abrir a boca e em quais ocasiões é recomendado manifestar interesse mesmo que não seja genuíno, eu adorei conhecer Jack Hoffman, provavelmente pela concomitância de defeitos que compartilho com ele.
Harrison precisa de um amigo (todos precisamos)
Eu não sei o quanto Albert Rutecki precisou atuar na série. O fato é que mesmo sem ter qualquer experiência prévia como ator, Harrison se manifestou na série com extrema naturalidade, não parecia haver esforço, não parecia haver alguma técnica secreta. Albert Rutecki simplesmente foi Harrison Dietrich enquanto a câmera esteve ligada.
Harrison é o que menos interage com o mundo do trio principal, é complicado afirmar se isso é por estar mais ao centro do espectro autista ou se é apenas porque seus pais têm dinheiro, o que faz com que não tenha necessidade de se expor ao mundo para trabalhar como seus amigos.
Passar o dia todo vendo tevê sem fazer nada é o sonho de muita gente, mas essa gaiola dourada faz com que a saúde de Harrison seja posta em cheque. Enquanto Jack precisa recuperar o emprego e Violet quer encontrar um amor, os desafios para Harrison são se exercitar um pouco mais, sair de casa pelo menos para ir à padaria e fazer um amigo para ajudar a não se sentir tão sozinho. Pode parecer uma lista boba, mas são desafios reais para ele.
Um brinde a Harrison, o mais focado em não dar trabalho aos outros. (imagem: Divulgação/Prime Video)
Como não dá para simplesmente acontecer tudo com todo mundo ao mesmo tempo, seu arco vai ganhando mais relevância conforme a temporada avança e talvez você demore um tempinho a mais para se importar com ele, mas com calma ele vai ganhar seu coração também.
Mandy, a âncora desnecessária
Eu adoraria tecer somente elogios sobre Nosso Jeito de Ser, contudo me sinto impelido a avisar que a série tem seus pontos negativos, e a maioria deles aponta para a Mandy.
Quando a terapeuta do grupo age como terapeuta não tem problema, mas na hora de executarem a série resolveram que o grande público neurotípico precisaria de um ponto de vista mais comum e resolveram jogar a vida pessoal de Mandy como uma âncora na história.
Não apenas o arco dela é previsível, como é chato. É uma série sobre pessoas autistas buscando controle das próprias vidas, não quero saber quem a terapeuta namora, se vai voltar a estudar ou não, o que ela faz dentro da própria casa. Se era pra pegar de surpresa, que fosse ela desistindo do trabalho e indo embora, não quero saber do conflito interno dela de cuidar do pessoal ou se especializar, especialmente com esse argumento barato e batido.
A cena em que colocam uma criança que deve ter menos de 10 anos dando dicas mais práticas para Harisson do que as da própria Mandy também acaba pesando contra, especialmente porque funcionaram. Se vir uma cena dela sem os protagonistas e achar chata, pode pular pois não perderá nada.
Parente não se escolhe
Um ponto da série muito interessante são os familiares que formam o elenco de apoio. A relação que cada familiar tem com os protagonistas, as contrastantes formas de lidar e as diferentes frequências com que cada um mantém contato revelam como cada família trata a questão do autismo.
Ao mostrar todos os parentes cometendo erros e acertos, a série transmite a mensagem de que não existe uma forma certinha sobre como lidar, um caminho mágico a ser trilhado por quem tiver um parente no espectro autista e isso agrega bastante ao realismo da série.
As We See It é a versão americana da série israelense On The Spectrum (lançada em 2018) e a principal motivação dessa nova versão vem de seu showrunner, Jason Katims, que é pai de autista e até mesmo tinha introduzido um personagem autista em sua série anterior, Parenthood.
Embora a versão original esteja disponível apenas na HBO Max norte-americana, eu tenho uma certa curiosidade em assistir em comparar as diferenças entre ambas. Espero que um dia ela apareça por aqui também.
Por fim, As We See It / Nosso Jeito de Ser é uma série muito humana que mostra cada um de seus personagens como pessoas falhas, e isso é ótimo. Uma possível segunda temporada na Amazon Prime Video pode ir para inúmeras direções excelentes, resta esperar pela renovação e por novas histórias com Violet, Jack e Harrisson.
Como o próprio trailer da série diz, “a vida é um espectro de possibilidades”.
Aparecer em fotos também nunca foi o meu forte, o importante é que a ocasião ao menos seja boa. (imagem: Divulgação/Prime Video)
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.