Assédio sexual: virtualmente real
Cenas assim acontecem o tempo todo, infelizmente. A garota de 21 anos, entretanto, conseguiu se safar do incômodo (para dizer o mínimo) porque tudo se desenrolou dentro do Metaverso.
Cena do assédio virtual: sem punição | Reprodução: Meta / BBC
Ambiente sem suspeitas
A ocorrência foi denunciada pela organização SumofUs, entidade sem fins lucrativos destinada a denunciar problemas e abusos de poder pelas grandes corporações. Divulgada pela BBC, a história aconteceu dentro da plataforma Horizon Worlds, da Meta. Um ambiente de realidade virtual disponível para usuários dos Estados Unidos e Canadá, em breve disponível no restante do planeta.
O Horizon Worlds é acessado através dos óculos de Realidade Virtual da própria Meta. tem um visual bonitinho, onde não se imagina acontecer nada além de papos animados, pesquisas, eventos, jogos, brincadeiras. O problema é aquela famosa pecinha do software, que está entre os óculos e a cadeira.
Inconvenientes do mundo real têm o péssimo hábito de se transportar para o virtual. Seria ingenuidade pensar que não haveria assediadores “do lado de lá”. Gente é gente, mesmo atrás de um avatar.
Ambiente virtual: o melhor e o pior de dois mundos | Reprodução: Meta / BBC
Colocando à prova
Nem precisa ir tão longe, numa plataforma sofisticada. Resolvi checar por conta própria como anda o mundinho virtual. Sou usuária de internet desde os primórdios, quando nasceram os primeiros chats. Acho que a última vez em que havia entrado num desses foi no final do século XX.
Fui procurar e descobri que o UOL ainda tem o velho Bate Papo. Entrei lá, numa sala por idades, apenas. Sem temas. Sim, temas ainda existem, alguns bastante safadinhos, se permitem a ousadia. Entrei com meu nome real, numa sala condizente com minha faixa etária. Digo que já não sou mocinha. Entrei e coloquei um descompromissado “oi”.
Dezessete segundos, no cronômetro. O bastante para um usuário passar uma cantada. Em um minuto, quatro homens me assediavam sem dó ou piedade. Um ao menos teve a fineza de perguntar se era casada. Não cheguei a dizer quem sou, o que faço, nem que sou realmente maravilhosa. Saí da sala.
Quem me conhece e me acompanha, sabe que não tenho perfil conservador, tampouco sou pudica ou envergonhada. Mas caramba, virtual ou real, não dão tempo nem pra respirar!
“Não é meu corpo real”. Será?
O jornal britânico The Sun, muito conhecido por pautas polêmicas, entrevistou Vicky Wyatt, uma das diretoras da SumOfUs. Ela relatou a conversa que teve com a pesquisadora assediada no Horizon Worlds.
A garota teve problemas sérios para lidar com o assédio sofrido, e só conseguiu se reequilibrar a partir do momento em que pôs na cabeça que “este não é meu corpo real, este é um avatar”. Ainda assim, destacou Wyatt, apesar de serem avatares, isso “ainda conta, ainda têm um impacto real nos usuários”.
“Você só quer atenção”
O caso da pesquisadora não foi o primeiro, e imagino que esteja longe de ser o último. Em sua defesa, a Meta disse que existe o recurso de “Limite Pessoal” (Personal Boundaries, no original), que impede que avatares excedam o limite de 1,2m (virtuais) um dos outros, mas a garota não estava com esta opção ativada.
Como se resolvesse ou atenuasse alguma coisa. Relatos deste tipo têm crescido de maneira rápida na plataforma. No início deste ano, Nina Jane Patel contou uma experiência perturbadora: cerca de sessenta segundos após entrar no Metaverso, foi abordada e assediada sexualmente por quatro avatares masculinos. Ela diz que foi praticamente estuprada, e que eles tiravam fotos enquanto tentava fugir, enquanto um deles gritava “não finja que você não está gostando”. Muito vida real para um ambiente virtual.
O detalhe é que a própria Nina é uma pesquisadora de interações e relacionamentos nas entranhas do Metaverso. Ela não só denunciou o ocorrido ao Meta, como publicou em suas redes sociais; e como no nosso mundinho real, recebeu comentários de uma sensibilidade ímpar: “não escolha um avatar feminino, é um simples conselho”, “você só quer atenção”, “não seja estúpida, não era real”, ou um dos mais bizarros: “avatares não têm corpos inferiores para ser atacados”.
Em seu relato, Nina Patel cita o Efeito Proteus. Fui atrás da definição: em 2007, pesquisadores da Universidade de Stanford, Jeremy Bailenson e Nick Yee, cunharam o termo, dizendo que “os avatares poderão ter fins terapêuticos ajudando aqueles que sofrem de fobia social a tornarem-se mais confiantes”
Tão confiantes, a ponto de colocar para fora suas piores características. Como bem observa a própria Nina, “as pessoas estão vivendo o Darth Vader de suas personalidades. Mas, na verdade, a Realidade Virtual é, foi e continua sendo projetada para ser não-ficção para a fisiologia e a psicologia humanas”. Resumindo, de boas intenções o inferno está cheio.
Fugindo da responsabilidade
Na reportagem da BBC, que tornou público o caso, uma citação do CEO da Meta, Nick Clegg, parece uma tentativa inequívoca (e mal-sucedida) de tapar o sol com a peneira: “Nós não podemos responsabilizar um gerente de bar para moderar a fala em tempo real em seu bar, como se devessem ouvir atentamente sua conversa e mandar que se cale se ouvir algo que eles não gostem”.
Acontece que o Metaverso não é um bar, e sim um ambiente virtual, sob gerência e responsabilidade de uma empresa. O sistema tem como registrar atividades. Não que deva criar um tipo de censura prévia, até porque é impossível e fere o princípio de liberdade que deve reger o mundo, seja real ou virtual.
Mas, que do mesmo modo que a pessoa assediada num bar tem o direito de chamar a polícia e fazer um boletim de ocorrência contra o assediador, que haja um sistema confiável de denúncia rápido no Metaverso, para que o avatar e a pessoa por trás seja banida do ambiente. E que não possa retornar num período, nem usando outro avatar.
São medidas simples, já usadas nas redes sociais. Faça uma gracinha no Twitter pra ver o que acontece. Idem no Facebook, que faz parte da mesma sacola do Horizon Worlds. Ou seja, não é assim tão difícil. E fica até ridícula a declaração do CEO.
Na mesma reportagem da BBC, Vicky Wyatt, a diretora da SumOfUs declarou: “Em vez de o Facebook se apressar em construir esse metaverso, estamos dizendo: olhe, você precisa parar e olhar para todos os problemas que estão acontecendo nas suas plataformas, que você nem sabe como lidar”. Segundo ela, não se pode permitir que os problemas do mundo real se repliquem no virtual, sem ter um plano para evitá-los.
“Foi só uma humilhação”
E se acha que esse problema fica restrito só ao ambiente “chique” do Horizon Worlds, está equivocado. Além de ter feito aquele rápido “teste” no Bate Papo do UOL, fui atrás de dados nacionais. E adivinhe, eles existem e é muito mais comum do que pensamos.
Em parceria com a Decode, empresa de pesquisa digital, o Instituto Avon realizou o estudo “Além do Cyberbullying: A Violência Real Do Mundo Virtual”. O trabalho foi feito entre julho de 2020 e fevereiro de 2021. A coordenadora da pesquisa, Beatriz Accioly, foi enfática em dizer que há muita subnotificação. No início os casos envolviam mais o vazamento de nudes, mas perseguição e stalking tornaram-se mais frequentes.
Mas talvez o mais sintomático é que a mentalidade não muda: “Ainda há uma percepção de que o que acontece na internet é menos grave do que face a face. 'Foi só uma humilhação na internet, foi só um cancelamento, foi só uma exposição’. E geralmente, mesmo com recursos à disposição para a denúncia, ninguém faz nada”.
Durante a pandemia, o número de acessos a sites de pornografia aumentou 35%. Na esteira, a busca por vídeos com prática de assédio e violência contra meninas e mulheres teve um acréscimo de 55%. O que é realmente assustador.
Medo, depressão e morte
Não pára nisso; assédios diretos movidos por professores, tutores e educadores, através das aulas remotas, saltou em 44%. No período pesquisado, houve uma média de 36 casos mensais de assédio por parte dos professores contra as meninas. Isto, os que foram denunciados.
Toda essa pressão sofrida, mesmo em ambiente virtual (como se isso aliviasse a gravidade da situação) traz resultados doloridos: houve um aumento considerável de garotas com medo de sair de casa, casos de depressão e com comportamentos suicidas. E pouquíssima atenção por parte das autoridades responsáveis.
Nina Patel, que sofreu o assédio no início do ano no Metaverso, acrescenta uma observação pertinente: “Realidade Virtual, Metaverso e outras tecnologias são projetadas para a interface humana (...) apoiados, e integrados simbioticamente com a tecnologia – mas não importa como progredimos, sempre seremos humanos e humanos são reais”.
Cabe aqui destacar um dado importante, revelado pela ONU, e citado na pesquisa do Instituto Avon: 95% de todas as ações agressivas e difamadoras na internet têm mulheres como alvo.
Nossa espécie não evoluiu. É complicada e imperfeita. Seja analógica ou digital.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.