Ataque dos cães ou o poder do cão: nada é mais furioso do que o desejo
Feminino, insondabilidade do desejo, sanidade questionada e apreço pelas artes são as pedras de toque da cineasta neozelandesa Jane Campion, que causou furor com O piano, de 1993 e incomodou a crítica e o público mais conservador com o thriller erótico Em carne viva, de 2003, que jogou luz sobre a sexualidade feminina.
O filme Ataque dos cães não deixa de falar sobre o feminino, por meio de Rose, personagem interpretada por Kirsten Dunst, uma mulher forte e frágil ao mesmo tempo, tentando sobreviver num universo masculino.
Mesmo o marido, que representa um masculino doce, oprime Rose, que se vê forçada a tocar piano em público. Como Ada, de O piano, tocar era uma forma de autoexpressão para Rose. Para Ada, o instrumento musical era a sua voz e consequentemente o canal por onde comunicava o seu desejo.
Ao ser ver forçada a fazer em público o que fazia por prazer e numa posição discreta, Rose sofre um tipo de bloqueio emocional, que se assemelha a uma fraqueza, mas que, na verdade, é um sinal inconsciente de resistência.
O bloqueio de Rose mostra a sua insubordinação. Tocar sem ser vista pode representar o próprio inconsciente, aquilo que não conseguimos capturar completamente, aquilo que está escondido para o mundo e para nós.
Porém, o foco de Ataque dos cães é o masculino, principalmente a homossexualidade masculina. Temos dois personagens homossexuais. Um que se aceita e outro que não se aceita e descarrega a sua frustração oprimindo a mulher e o homossexual bem-resolvido.
Porém, mesmo Peter, filho de Rose, aparentemente cordato e gentil, mostra um lado muito cruel ao matar um coelho com o objetivo de dissecá-lo. O animal que gerara tanta alegria entre as mulheres da casa foi morto para atender a um interesse de Peter.
Peter ama a mãe e parece se vingar de Phil por todo o sofrimento que fez ambos passarem. Por outro lado, mais do que um filho defendendo a mãe, mais do que as formas de viver a homossexualidade, Ataque dos cães é uma obra sobre o poder furioso do desejo.
Todos nós temos um cão em nós e a natureza do desejo é a imprevisibilidade. O cenário selvagem parece nos remeter à própria brutalidade do desejo, a tudo aquilo que não podemos controlar.
Este artigo foi escrito por Silvia Marques e publicado originalmente em Prensa.li.