Baquaqua: O ex-escravo autobiografado que viveu no Brasil
Imagem: Divulgação/Bruno Véras
A saga de Mohammah Gardo Baquaqua começa em meados dos anos 1820, no reino de Bergoo - atual Borgoo em Benin. Não se sabe ao certo o ano em que Baquaqua nasceu, ao que tudo indica, em 1824.
Filho de pai muçulmano de origem árabe e mãe negra retinta que não professava religião específica. Gardo foi criado nos costumes da religião islâmica.
No reino de Bergoo, assim como em grande parte da África do século XIX, os prisioneiros de guerra eram escravizados e vendidos como escravos.
Antes de prosseguirmos com o relato dessa epopeia, é fundamental esclarecermos que essa dinâmica social de escravidão era a mesma que havia na Europa antes da ascensão da Cristandade no continente europeu.
Não podemos olhar o passado com os olhos do presente e cometermos o anacronismo de imaginar uma ideia de unidade racial entre negros que inexistia na África do século XIX.
Muitas vezes, a retórica de que "o próprio negro escravizava o negro" é utilizada para atenuar ou justificar a escravidão. Dito isto, sigamos com esta jornada extraordinária.
Mohammah era sobrinho de um tio rico comerciante e funcionário do rei. O irmão de Baquaqua era soberano de um pequeno reino. Seus pais tinham origem mais modesta.
Nosso herói foi feito de escravo pela primeira vez após a derrota do reino de seu irmão em uma guerra. No entanto, ele foi resgatado pelos seus asseclas e retornou ao seu Estado.
Em Bergoo, Mohammah se tornou chefe de segurança do rei, sendo o terceiro abaixo do soberano na hierarquia real. Nesta condição de destaque, Baquaqua provocou muita inveja entre a nobreza.
Em uma visita à cidade de sua mãe, Gardo foi recebido por uma grande festa com música composta em sua homenagem. Ele acreditou que esse rega-bofe em sua honra era devido à sua grande posição social junto ao rei.
Baquaqua distribuiu dinheiro e vinho a todos que participaram do evento. O nosso herói já embriagado foi convencido a visitar outra cidade onde também havia festa em nome do soberano local. Por lá, ele exagerou no consumo de álcool.
Ao despertar sob uma forte ressaca, Baquaqua estava agrilhoado em uma aldeia e logo descobriu que havia sido traído pelos seus compatriotas e vendido como escravo aos seus inimigos.
Rumo ao Navio Negreiro e Escravidão no Brasil
Gardo foi levado junto a centenas de escravos ao litoral africano para ser vendido como escravo aos traficantes negreiros das Américas.
Na costa africana, antes do embarque no tumbeiro, todos os escravos foram marcados com ferro em brasa como gado. Era só o início do pior tormento que um ser humano poderia sofrer sobre a terra.
Muitas vezes, os navios negreiros não aportavam na costa africana, esperavam próximo ao litoral para receber as "mercadorias" transportadas em barcos precários.
Quando o mar estava revolto, muitas embarcações afundavam e milhares de africanos já perdiam a vida antes de ingressar no tumbeiro - o navio negreiro.
Não foi o caso de Baquaqua, que para sua desgraça, segundo ele, embarcou no mais terrível lugar do mundo: o tumbeiro.
No navio negreiro, ao lado de centenas de outros escravizados, Gardo ficou confinado no porão do navio, todos completamente nus. O porão era tão baixo que não podiam ficar em pé, viviam agachados ou sentados.
O ambiente era uma completa imundície insuportável, todos se besuntando nas próprias fezes e urina. Baquaqua dizia que seu coração adoecia ao lembrar daquela repugnância.
A única comida que os infelizes escravizados comiam era milho encharcado e cozido. Só tinham direito a pouco mais de meio litro de água por dia.
Quando algum escravo se rebelava tinha a pele cortada e os algozes jogavam pimenta nas feridas. Inevitavelmente, muitos adoeciam pelas condições insalubres e torturas. Estes eram jogados ao mar ainda com vida mas sem forças de lutar por ela.
Por cerca de 40 dias de viagem, só foi permitido aos cativos se lavarem apenas duas vezes, uma vez no meio da viagem, e no fim pouco antes de chegar ao porto.
Finalmente, Gardo desembarcou em Pernambuco. Foi avaliado como cavalo pelo seu comprador, um padeiro branco português. Nosso herói, o terceiro da hierarquia real na sua terra natal, se tornou apenas um escravo braçal no Brasil.
De início, Mohammah exerceu o trabalho de pedreiro para o seu senhor. Mais tarde, após aprender bem o português, foi utilizado como o chamado "escravo de ganho", vendia pão na cidade para seu senhor. Quando não vendia tudo era castigado com chicotadas.
Como era comum na época, como tantos outros negros escravizados, Baquaqua também se entregou ao vício do álcool, como forma de escapismo às agruras da escravidão.
Muitos cativos sucumbiam ao banzo, uma tristeza profunda por estarem longe de sua terra natal e sob cativeiro. O que levava os escravos à loucura e/ou à morte. Pode ser considerado algo parecido à depressão ocidental.
Certo dia, já não suportando mais o cativeiro, Gardo vendeu apenas uma pequena quantidade de pão, com o dinheiro comprou uísque, se embebedou e voltou para casa embriagado.
Baquaqua foi severamente espancado pelo seu senhor, em seguida tentou suicidar-se se jogando num rio, mas foi resgatado por pescadores.
Após este ato, Mohammah foi brutalmente espancado de forma ainda mais severa pelo seu senhor e depois negociado mais uma vez. Ele foi vendido a um traficante negreiro que o vendeu para um capitão de navio no Rio de Janeiro.
Primeiramente, Gardo teve a função de faxineiro, depois foi promovido a segundo mordomo. No entanto, após uma discussão com o contramestre de seu capitão, sofreu castigos corporais como nunca havia sofrido antes. Contudo, sua sorte iria mudar.
A grande esperança de liberdade
No Rio de Janeiro, ele foi comprado por um comerciante inglês que iria transportar café para Nova Iorque. Todos os cativos desse senhor se encheram de alegria, pois sabiam que no norte dos EUA não havia escravidão.
Com este senhor, Mohammah também teve o mesmo destino. Ao não conseguir realizar uma tarefa que era necessário o trabalho de 3 homens para concluí-lo, foi chicoteado pelo senhor.
É interessante ressaltar como o racismo era acompanhado pela misoginia, pois Gardo relata que seus senhores eram ainda mais cruéis e sádicos com as mulheres negras escravizadas.
A viagem a Nova Iorque durou de 17 de abril a 27 de junho de 1847. Ao desembarcar nos EUA, nosso herói e demais escravizados fogem do cativeiro. Entretanto, Baquaqua é encontrado e preso por autoridades estadunidenses e resgatado pelo senhor.
A convenção jurídica entre Brasil-EUA estipulava que marinheiros voltassem ao seu destino de origem. No entanto, como Gardo e demais cativos brasileiros reivindicavam sua liberdade, todos são levados a julgamento.
À espera de decisão judicial, Mohammah e um companheiro brasileiro de nome Rocha, fogem da prisão em 9 de agosto de 1947 com a ajuda de abolicionistas negros.
Esse grupo abolicionista foi responsável pela viagem de fuga do nosso herói para Boston e de lá para o Haiti, primeiro país a abolir a escravidão nas Américas, um feito extraordinário dos próprios negros até então escravizados.
Chegando ao Haiti, Baquaqua se torna cozinheiro. Todavia, ele ainda sofria o mal do alcoolismo desenvolvido durante sua estadia maléfica no Brasil. Este vício levou Mohammah à condição de mendigo.
Contudo, foi resgatado por missionários da Igreja Batista. Após todo o acolhimento e generosidade dos missionários, Gardo acaba se convertendo ao cristianismo.
Para fugir do alistamento militar do Haiti, que passava por uma grave crise política, Baquaqua retorna à Nova Iorque. Lá ingressa na faculdade, onde desgraçadamente é vítima de racismo e humilhações terríveis, mesmo sendo um aluno aplicado. Ele estuda de 1850 a 1853.
Após concluir a faculdade, Gardo viaja para o Canadá com o intuito de ir para a Inglaterra. Ele vai para Liverpool em 1857. Lá, mediante sua condição de distinto cavalheiro, tem concedido pela Majestade a cidadania inglesa.
Na Inglaterra, ele arrecadava fundos para seu retorno triunfante para sua pátria-mãe. Desgraçadamente, a partir de 1857 não se teve mais notícias de Mohammah Gardo Baquaqua. Infelizmente, não sabemos se nosso herói realizou o seu sonho.
No entanto, de qualquer forma, Baquaqua nos brindou com esse relato épico de luta, resistência, perseverança e vitória do povo negro.
A autobiografia de Baquaqua foi publicada em 1854 pelo abolicionista Samuel Moore (fonte).
Este artigo foi escrito por Célio Roberto e publicado originalmente em Prensa.li.