BBB: Representação das sociedades
Essa é uma questão para o futuro. Para o presente, a questão que fica é “e por que analisar o BBB tem alguma importância?”. Para os princípios da socioanálise (análise profissional do comportamento coletivo), a importância é altíssima.
Acertos e equívocos da comunidade são identificados a partir de observações dos costumes e hábitos sociais. Assim, princípios fortes podem ser incentivados e os fracos, redirecionados.
E, então, surge ainda outra questão: “e por que o tal BBB teria relevância nesse cenário?”. Porque é o assunto que 65% dos brasileiros discutem hoje, segundo levantamentos informais feitos por diversos órgãos. Desde o início imediato da segunda quinzena de janeiro, as redes sociais se voltam ao programa.
Veja mais números do BBB neste link da Prensa e o bom humor neste outro.
O BBB e a antropologia
“Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural.” Esta definição que vocês, leitor ou leitora, encontram no site da Universidade de S. Paulo - USP descreve o escopo geral deste artigo. E se complementa por “busca de respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo ‘Outro’ observado’”.
Bem antes da estreia, um verdadeiro exército de observadores já dispunha os olhos voltados ao programa. Em termos econômicos, o evento aciona a mídia como um todo e muitas outras atividades paralelas. Esta edição, a 22ª, atraiu 5,6 milhões de telespectadores por minuto apenas na cidade de São Paulo, conforme matéria da BBC News Brasil.
Eis a relevância para uma autoanálise social. “O homem como ser social e cultural” representado, desenhado nos bilhares de telas/telinhas/áudios mundo afora.
Programas em que o indivíduo é observado minuto a minuto por uma comunidade de milhares de outros indivíduos teriam, então, força para caracterizar as sociedades atuais? Seriam eles o resumo de sociedades inteiras?
O BBB e a Comunicação
O que o BBB comunica? A palavra “comunicação”, segundo a etimologia, tem várias origens. Algumas são mais aceitas, como a vinda do latim communicatio. A significação mais clara é tal como “tornar comum”.
Um bom resumo do conceito de Comunicação é emissão de mensagem por um meio qualquer para um alvo. Em outras palavras, é preciso haver um emissor que usa um meio para enviar uma mensagem a um receptor. Há estudiosos que consideram esses quatro como essenciais para o ato da comunicação.
Existe uma série de elementos secundários - portanto, podem ou não estar presentes - que auxilia na comunicação. Contexto, historicidades do emissor e do receptor, canal, ruído, entre outros. Dentre eles, o ruído é componente ocasional do ato da comunicação que produz justamente não-comunicação. Ou seja, dificulta.
Tudo é mensagem
Por esse cenário, denota-se que tudo é mensagem. Tudo. Não apenas o que é veiculado por palavras escritas ou faladas ou ainda por imagens quaisquer. Tudo é mensagem.
No mundo real, a roupa que se usa, os gestos que se apresenta, os locais que se frequenta etc. são mensagens; no mundo virtual, as postagens que se positiva ou se negativa, os segundos em que se observam fotos, os grupos de que se participa, os compartilhamentos que propostos etc. são mensagens.
Imagina-se, então, um evento em que tudo - mundo real e mundo virtual - esteja conjugado, concentrado! E mostrado por dezenas de câmeras que vasculham a postura de cada participante do reality.
Assim, se tudo é mensagem, que tipo de mensagem (Comunicação) está construindo a imagem (Antropologia) das sociedades por meio do BBB?
Hipertensão de Perversidade
O autor do ensaio Hipertensão e Outros Significados para a Pequenez de Alguns analisou o reality show extremista. De início, esclarece que o hábito de observar algo com constância antes da crítica é saudável. Elogia-se ou condena-se, seja o que for.
Assim, é possível seguir o rumo ou desviá-lo. Por isso, alega que a primeira noite do primeiro episódio do programa e os primeiros minutos do primeiro BBB deveriam já ter sido janela de observação do que se veria depois: “a hediondez humana levada ao extremo”.
Para o autor do ensaio, os quarenta minutos iniciais mostraram que a dignidade humana estava posta a crivo e infelizmente perdendo força. Já nas primeiras cenas do programa anual foi perceptível que:
corpos expostos como mercadoria buscavam construir fama a qualquer custo
palavras expunham conceitos fúteis sob ideias fracas sobre relacionamento
o elemento humano estava reduzido a meros níveis no gráfico de audiência
a condição humana fora tão comercialmente explorada somente durante o sistema feudal e escravocrata
Perversidade latente
No caso do BBB, Regina P. C. Abeche, Ângela Caniato e Lara H. Santos o analisam no artigo “Ética e Paradigmas na Psicologia Social”. O capítulo “É hora do espetáculo da perversidade: o aprisionamento da subjetividade dentro dos realities shows” destrincha os esquemas da indústria midiática. Para elas, esse tipo de programa promove padronização das subjetividades.
Ainda, expõe a perversidade dos valores negativos que embasa o comportamento dos participantes:
Dependência de sorte
Limitação por confinamento
Consciência sobre vigilância externa
Ameaça constante de exclusão
Aceitação de privação geral
Busca por fama
Foco total em dinheiro
Cultuação da imagem do herói
Os muitos BBBs
O tipo Big Brother de entretenimento foi lançado em 1999 na Holanda. Em verdade, a intenção dos idealizadores foi adaptar experiências sociais à linguagem televisiva. Dessa maneira, tencionavam elevar o nível crítico do espectador em relação a diversas situações que a civilização atual enfrenta.
Contudo, a criatura mostrou-se maior que o criador e tudo parece ter saído de controle. A fortuna bateu à porta do idealizador, o holandês John de Mol - o que nada tem de errado e, aliás, já era esperado. No frigir dos ovos, a mercantilização da imagem do indivíduo ganhou espaço na percepção da sociedade.
Muitos outros tipos foram criados desde então: programas com artistas ou com desconhecidos; culinários; plásticos; empreendedores etc. A ideia central de todos eles, entretanto, é desfocada por excelentes peças de marketing. Em verdade, a ideia é antiga: “exposição de seres humanos a níveis variados de humilhação”.
Mas a publicidade vende tudo isso como “determinação pessoal”. Por identificação, é o mesmo sentido vendido nas décadas anteriores em programas semelhantes a “Boa noite, Cinderela” .
Os antigos circos dos horrores já aproveitavam muito bem a necessidade social de julgar, opinar, vigiar. E, atualmente, cancelar.
Visão da Psicologia
A dra. Helena Silveira é psicóloga comportamental cognitiva e colaboradora do Programa de Ansiedade - Amban do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de SP. Iniciado em 1985, promove estudos multidisciplinares sobre transtornos de pânico. Ela concedeu entrevista à Prensa.
A percepção da dra. Helena sobre os realities shows indica que há aspectos positivos (o indivíduo procura enxergar a si mesmo por meio do outro) e negativos (aprendizados banalizados; diversão com a dor alheia; vibração com brigas e conflitos). Trata-se de verdadeiro laboratório humano em que a busca por fama e dinheiro é ponto de análise.
Há ainda o perigo da alienação. “As pessoas buscam preencher vazios pessoais ao ‘consumir’ a vida de terceiros. Afinal, podem não conseguir, não querer ou mesmo não ter sido ensinadas a lidar com suas questões de vida”.
O indivíduo
Dra. Helena destaca que as dezenas de câmeras (os olhos do Big Brother/sociedade) e o estado de confinamento podem provocar perda de identidade individual. Ainda, disputas e jogos com expectativa de certos privilégios devem causar estresse.
Dessa maneira, é grande a chance de haver mudanças de comportamento e respostas fisiológicas como ansiedade e raiva, além de alteração no humor, pânico, depressão e até quadros mais graves de alguma doença mental residente.
Dinheiro, poder e frescobol
Uma metáfora usada pela dra. Helena é oportuna: “não se trata de um jogo de frescobol em que todos ganham se a bola permanecer no ar”. Ali, o intuito é ganhar a qualquer custo e o instinto é permanecer até o final dentro da casa.
Nesse cenário, o envolvimento de dinheiro no cotidiano dos participantes resulta em situações contraditórias. As estratégias para se manter no ambiente vão de opressão contra colaboradores à ajuda a adversários e comoção diante do público. Esse conflito torna tudo muito impessoal.
Paredão igual Covid-19
De certa maneira, a pandemia tem sido benéfica para o BBB. Em 2021 e neste ano, o isolamento parece ter colocado participantes e público no mesmo barco. “Dessa forma, podemos avaliar que houve um ponto de identificação entre o público participante e os espectadores confinados do lado de cá”, observa a dra. Helena.
Esse elo poderia ser base para criação de espírito crítico. Contudo, tal parece não ter ocorrido. E isso “é uma pena! Eu recebo no consultório pacientes com baixo poder de crítica, com imaturidade na percepção do outro”.
Química no Jogo da Discórdia
Outra percepção importante observada pela entrevistada vem ao encontro do foco deste artigo: caracterização das sociedades atuais. “O público quer ver a discórdia, brigas, desavenças. Tudo é compreendido como um jogo desafiador em que terá um vencedor e o poder de voto favorece mais ainda a disputa”, diz ela.
E continua: “Não vejo diferença entre os combates nos palcos de lutas entre os gladiadores no maior símbolo do Império Romano, o Coliseu, nas primeiras décadas desta era. Claro que guardando as devidas proporções e com regras definidas em outro formato”.
A psicóloga lembra que há uma questão química envolvida. Ao assistir a algo ou enfrentar situações prazerosas, o cérebro dispensa o neurotransmissor associado a emoções, a dopamina. “O cérebro fica viciado na sensação de prazer e sempre tende a pedir mais daquilo”. O problema é que não há filtro desse prazer, ou seja, pode originar-se de altruísmo ou de misantropia.
Algo sobre o qual certamente jamais se terá certeza é se esse fator foi levado em consideração ou não pelos idealizadores desse tipo de entretenimento.
E talvez aí more o perigo. Não parece ser de bom alvitre que uma civilização inteira seja caracterizada, no futuro, por prazeres fúteis, concorrencionismo barato, julgamentos ao bel-prazer do egoísmo, destruição de vários indivíduos em benefício de apenas um.
Esta parece ser a mensagem na Comunicação que entretenimento semelhante está deixando para a Antropologia do futuro.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.