Bitcoin como moeda oficial: erro ou acerto de El Salvador?
Um começo nada fácil. No dia 7 de setembro de 2021, El Salvador se tornou o primeiro país a fazer do Bitcoin (BTC) sua moeda legal, juntamente com o dólar americano, moeda oficial no país desde 2001. A data foi marcada por protestos nas ruas, falhas tecnológicas e uma queda no valor do BTC.
A volatilidade do Bitcoin não é nenhuma surpresa, mas uma queda de 18,6%, não é algo que a maioria dos cidadãos quer de suas moedas. Não quando isso indica uma perda de 180 bilhões em valor de mercado.
Aliás o Chivo, o aplicativo criado para os salvadorenhos transacionarem em Bitcoin, estava indisponível durante a maior parte do dia. A explicação dada pelo presidente Nayib Bukele é que o governo "desligou temporariamente" o Chivo para lidar com a demanda.
Captura de tela de Tweet de Bukele sobre os pontos do Chivo em El Slvador
Lei do Bitcoin
A movimentação para oficializar o Bitcoin como moeda legal de El Salvador ocorre desde junho, quando Bukele apresentou ao Congresso seu projeto. E talvez um dos fatos mais surpreendentes deste episódio é que a Assembleia Legislativa de El Salvador aprovou a Lei do Bitcoin apenas três dias depois do anúncio de Bukele sobre seu projeto de conversão do BTC.
Uma das explicações é a maioria que o presidente tem no Parlamento. No dia 9 de julho de 2021, a lei de Bukele foi aprovada por 62 votos (dos 84 possíveis) e entrou em vigor na primeira semana de setembro. Ela estipula que o Bitcoin deva ser aceito como uma forma de pagamento em qualquer lugar de El Salvador.
A velocidade na aprovação e a falta de análise pública prévia ainda causam insegurança sobre como tudo isso vai impactar não só na vida dos salvadorenhos, mas nas relações financeiras de outros governos com El Salvador.
O objetivo desta lei é “regular o Bitcoin como curso legal, irrestrito, com poder de liberação, ilimitado em qualquer transação e a qualquer título que o público natural, legal ou privado precisa ser realizado”.
A Lei do Bitcoin também determina que o câmbio entre o Bitcoin e o dólar "será livremente estabelecido pelo mercado", sendo que todas as empresas serão obrigadas a aceitar o pagamento em BTC, a menos que comprovem que não dispõem de meios tecnológicos para fazê-lo.
Dessa forma, uma simples compra de supermercado pode ser paga tanto em Bitcoin quanto dólar. E para adquirir e usar o BTC, o salvadorenho apenas precisa de um aparelho eletrônico com internet.
A situação fica complicada nesse ponto porque somente 45% das pessoas têm acesso à internet e mais de 90% dos lares rurais não têm essa conectividade, de acordo com um estudo de 2020 do BID, do IICA e da Microsoft.
O 14º artigo da da lei também pode ser motivo de apreensão. “O Estado garantirá, por meio da criação de um trust no Banco de Desenvolvimento de El Salvador (BANDESAL), a conversão automática e instantânea de Bitcoin para dólar”.
Por que preocupa: Isso significa que é de responsabilidade do Estado absorver os riscos de volatilidade do Bitcoin. E diante da volatilidade significativa dessa criptomoeda, El Salvador pode encarar sérios problemas fiscais.
O vislumbre de Bukele
Com 6,5 milhões de habitantes, 70% da população sem conta bancária e a segunda posição de pior conectividade com a Internet da América Latina, o presidente Nayib Bukele viu a oportunidade "ideal" para seu experimento com Bitcoin.
Para ele, a adoção do Bitcoin representa oportunidade de emprego e de inclusão financeira para milhares de salvadorenhos, fazendo referência aos 70% de pessoas que estão fora da economia formal. Bukele não deu detalhes sobre como a nova política funcionaria.
Captura de tela de Tweets de Bukele explicando como o bitcoin pode beneficiar o país.
Ainda de acordo com Bukele, o fato do Bitcoin apresentar uma capitalização de mercado de US$ 680 bilhões ajudaria na atração de investimentos para El Salvador. Com uma capitalização desse valor, se apenas 1% do Bitcoin fosse investido no país, o PIB nacional aumentaria em 25%.
Para o presidente, a criptomoeda seria útil no dia a dia do país, visto que US$ 6 bilhões ao ano (um quarto do valor PIB) provém de salvadorenhos que trabalham em outros países e enviam dinheiro de volta. O BTC daria suporte a mais de um milhão de famílias de baixa renda, e ofereceria uma economia de US$ 400 milhões no pagamento de taxas a intermediários.
Quanto à conectividade de internet, em seu Twitter, o presidente declarou que a empresa Blockstream será responsável por fornecer as condições necessárias para facilitar a adoção do Bitcoin. A medida envolve a infraestrutura de satélites, levando a cobertura de internet principalmente para as áreas rurais.
Além da aprovação da lei, El Salvador também almeja se transformar em um importante centro de mineração da criptomoeda. Para isso, Nayib Bukele quer oferecer energia renovável a partir de vulcões, com custo reduzido.
“Acabo de orientar o presidente da LaGeo (estatal que controla as usinas geotérmicas do país) para criar um plano que ofereça nossa estrutura para a mineração de Bitcoin com energia muito barata, 100% limpa, 100% renovável, sem emissão [de carbono] a partir dos nossos vulcões. Isso vai evoluir rápido” afirma Nayib Bukele em rede social.
Insatisfação popular
Quando comparada às outras iniciativas de Bukele, como doação de alimentos na pandemia de COVID-19, a Lei do Bitcoin não tem se mostrado muito popular. Uma pesquisa recente da Universidade da América Central aponta que 56% dos salvadorenhos não confiam no Bitcoin, e 71% disseram que não planejavam aderir a essa criptomoeda.
Outras pesquisas também comprovam a desconfiança da população de El Salvador. Em estudo realizado pela LPG Datos, a unidade de pesquisa social do LA PRENSA GRÁFICA, comprovou-se que 65% da população desaprova o uso do Bitcoin como moeda. Além disso, 72,2% das pessoas entrevistadas não estão dispostas a aceitar Bitcoin como forma de pagamento.
A pesquisa da LGP Datos contou com a participação de 1.506 pessoas de todo o país, entrevistadas presencialmente, por meio de visitas domiciliares, entre 18 e 24 de agosto deste ano. O que confere uma margem de erro de 2,6% e nível de confiança de 95%.
Nayib Bukele é o presidente latino-americano com o mais alto índice de popularidade, mas isso não o isentou da insatisfação popular nas ruas da cidade de San Salvador. Mais de mil pessoas fizeram um protesto durante o dia anterior (06/09) contra a adoção da criptomoeda, com a queima de pneus e disparo de fogos de artifícios em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal do país.
No dia em que a Lei do Bitcoin entrou em vigor (07/09), como incentivo Bukele deu a cada salvadorenho US$ 30 (cerca de R$ 156) , distribuídos em 200 caixas eletrônicos do país para convertê-los em dólares.
Três dias depois, houve uma desvalorização e a população não dispunha mais de US$ 30, mas US$ 26 (R$ 135). A insegurança da volatilidade ainda é um agravante para os salvadorenhos.
Porque as criptomoedas são voláteis?
A volatilidade das criptomoedas preocupa também investidores desses ativos. Moedas como Bitcoin (BTC) integram um mercado ainda em amadurecimento, que sofre influências de causas tradicionais, como oferta e demanda.
A volatilidade: no setor financeiro, ela se refere à estabilidade de um índice econômico ou do preço de uma ação. Quanto mais volátil o ativo, mais intensas e frequentes serão suas oscilações de preço.
Uma das maneiras mais comuns de medir a volatilidade de um ativo é através do Índice de Volatilidade CBOE (VIX). No caso da mensuração do Bitcoin temos o Índice de Volatilidade do Bitcoin ("Bitcoin Volatility Index", em inglês).
Série Temporal de Volatilidade Bitcoin de 16 de agosto de 2010 a 12 de setembro de 2020
3 motivos para o mercado de criptomoedas ser volátil:
1. Tamanho do mercado
Mesmo tendo alcançado a marca de US$ 1 trilhão no início de 2021, as criptomoedas ainda ocupam um espaço pequeno quando comparado a mercados mais tradicionais. Por exemplo, o mercado global de ações tem capitalização total de mais de US$ 82 trilhões.
2. Notícias
As criptomoedas fazem parte de um mercado ainda em desenvolvimento e sua tecnologia é desconhecida para a maioria das pessoas, ou seja, a desinformação e notícias sobre esse ativo digital faz com que sua adoção flutue e seja lenta.
Se a mídia comenta algo positivo sobre o Bitcoin, por exemplo, isso tem capacidade de aumentar sua compra e seu preço. Entretanto, se for uma notícia negativa, as chances são de que o preço do Bitcoin caia.
Um exemplo de volatilidade ligado a mídia é o tweet de Elon Musk. Ontem (12/09), o CEO da Tesla, postou no Twitter que tinha um cachorro chamado ‘Floki’. O resultado foi uma super valorização de mais 1300% da criptomoeda chamada “Floki Inu” nas horas seguintes, de acordo com a CoinGecko.
Captura de tela de Tweet de Elon Musk sobre seu cachorro
3. Regulação
Ainda há diversos governos que não possuem uma regulação para ativos digitais, logo, estes países atuam à base de decretos e portarias, sem uma lei mais específica.
Qual a influência do dólar no Bitcoin?
A maioria das commodities de alto valor (petróleo, ouro, prata) é negociada em dólar, sem contar que, no quarto trimestre de 2020, o dólar americano representava cerca de 60% de todas as reservas cambiais conhecidas dos bancos centrais no mundo, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Tudo isso fez com que a moeda virasse referência global para a cotação de ativos financeiros tradicionais e para sistemas de pagamentos. Consequentemente, é possível notar a grande influência do dólar no cenário macroeconômico, que por sua vez influencia nas criptomoedas.
Além da volatilidade…
A instabilidade é o maior empecilho para que empresas comecem a adotar o Bitcoin. Esse foi o motivo que levou Elon Musk a desistir de aceitar o BTC na venda de carros Tesla. Fora a famosa volatilidade, a decisão de Buleke ao tornar o Bitcoin moeda legal também colocaria os bancos em risco de lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e evasão fiscal.
Entre os críticos da Lei do Bitcoin e suas implicações há o Banco Mundial e o FMI. Em junho de 2021, El Salvador solicitou auxílio técnico na implementação do Bitcoin (BTC) ao Banco Central. O pedido foi negado em função dos problemas que a criptomoeda representa para o meio ambiente e para a transparência das finanças.
Ucrânia seguindo os passos de El Salvador?
E não foi apenas El Salvador que vem fazendo mudanças. No dia 8 de setembro de 2021, o Verkhovna Rada, conhecido como o Conselho Supremo da Ucrânia no legislativo, aprovou em quase unanimidade a lei que regulamenta o Bitcoin e outras moedas digitais no país.
Antes da lei de número 3637, a Ucrânia não possuía nenhuma legislação para reconhecer e definir essa classe de ativos.
Captura de tela de Tweet do Conselho Supremo da Ucrânia
O que muda na Ucrânia com a nova lei sobre o Bitcoin?
A partir de agora, criptomoedas, tokens, entre outros, passam a ser considerados ativos digitais. Isso não quer dizer que o Bitcoin será considerado uma moeda, mas a lei já insere uma definição sobre o mesmo em seu dicionário jurídico.
Segundo o Verkhovna Rada, a lei surgiu como solução para pelo menos seis pontos que preocupavam o governo, o que inclui a ausência de regulamentação jurídica das relações de ativos digitais e de mecanismos de tributação de rendimentos auferidos nessas transações.
A criação da lei também teve o intuito de garantir mecanismos eficazes para atrair investimentos estrangeiros à Ucrânia.
Segundo a lei, qualquer organização ligada às criptomoedas pode realizar suas atividades na Ucrânia, porém deverá atender a alguns pré-requisitos:
Apresentar uma reputação estelar;
Provar que pode ser transparente com as autoridades;
Pagar uma taxa de US$ 3.000, além de outros impostos da operação.
As exigências visam mitigar as chances de lavagem de dinheiro e o terrorismo financeiro.
Como fica El Salvador?
Fazer do Bitcoin sua moeda legal certamente é uma ação pioneira de El Salvador, mas não se pode negar que o processo foi acelerado demais, e a opinião da população, assim como sua realidade, não foram analisadas no quadro geral por Bukele.
A inovação existe, mas ela ainda está nas mãos virtuais de uma moeda descentralizada, cujo valor é muito dependente da confiança no mercado. Uma confiança que pode ser quebrada de uma hora para outra.
Nota: Todos os tweets deste artigo foram traduzidos para facilitar o entendimento.
Este artigo foi escrito por Luana Brigo e publicado originalmente em Prensa.li.