Black Lives Matter como desterritorialização e territorialização: A filosofia espacial de Deleuze e Guattari à luz da insurreição americana
‘’O Sujeito e o Objeto oferecem uma má aproximação do pensamento. Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra.’’ O que é a filosofia? — Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Introdução
Friedrich Nietzsche, filósofo de grande importância e influência para a obra de Deleuze e Guattari, já nos alertava sobre o problema de pensar categorias engessadas e universais de sujeito e objeto, ação e reação. ‘’[…] O agente’’ é uma ficção acrescentada à ação — a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito[1]’’. Seguindo esse apontamento, os autores procuraram entender o movimento de territorialização e desterritorialização como o próprio movimento imanente do devir terrestre. Território e terra aqui são os conceitos substitutos que fazem frente a uma tradição filosófica da transcendência. Como sabemos, Deleuze e Guattari propõe uma filosofia da imanência, e não só traçam seu plano, como o estabelece como prerrogativa de análise em seus escritos, inclusive para analisar filosofias da transcendência. O pergunta deleuziana e guattariana parafraseando Nietzsche é por excelência ‘’O quanto de imanência cabe em um espírito?’’. A imanência se encontra permeada de fluxos constantes, de movimentos infinitos de territorialização e desterritorialização, que, com relação com a terra, cria e destrói territórios. Sempre dessa forma. Não há territorialização e desterritorialização como itens separados. A totalidade do conceito engloba esses múltiplos fluxos rizomáticos que constantemente adquirem novos códigos ou perdem seus códigos antigos. Assim, sua filosofia pode ser utilizada não só para demolir antigos deuses e símbolos, mas projetar fluxos novos, que estejam de acordo com o modo de vida desejado. As revoltas estadunidenses do Black Lives Matters, onde estátuas de mercadores de escravos e colonizadores, que antes simbolizava a pecha de ‘heróis da nação’, estão sendo derrubadas por manifestantes que exigem a retratação dessa memória de exploração e espólio, podem ser lidas como esse movimento de territorialidade. Os antigos colonizadores e mercadores de escravos operaram uma desterritorialização da América, e uma reterritorialização violenta e racial, sob o emblema do novo mundo. Tal movimento foi tão fundo, que até hoje, mobiliza militantes em nome de valores como ‘’A pátria’’, ‘’O povo’’, ‘’Tradição’’,’ que excluem a diversidade de formas de vidas resistentes a esse receptáculo vazio do devir europeu sedentário. A resposta a esse movimento está vindo da mobilização dos povos oprimidos por ele, que buscam operar esse movimento de territorialidade, desterritorializando os fluxos racistas e opressores e reterritorializando fluxos livres e devires outros.
Pensamento Nômade e Pensamento Sedentário
Os autores opõe categorias de conceitos, como nômade e sedentário, assim como máquina de guerra e aparelhos de estado; Cada um possui um fluxo desterritoralizante e reterritoralizante. O nomadismo se refere a um tipo de pensamento que tem em seu cerne o movimento infinito desta relação de territorialidade. Se o pensamento nômade vive dentro do pensamento sedentário, isso se deve a um agenciamento múltiplo constante onde há por um lado fluxos codificados e tentativas de codificação (por meio dos aparelhos de captura) e por outro, há linhas de fuga que agenciam formas de resistências nômades. Voltando à situação do Black Lives Matters, O pensamento nômade é o pensamento livre, que agencia sua máquina de guerra contra o pensamento sedentário, caracterizado pelo poder do estado e consequentemente da manutenção e perpetuação de seu poder. O Racismo estrutural norte-americano é um fluxo codificado por esse pensamento sedentário, que busca a perpetuação e encontra seu embate no fluxo desterritorializante da revolta, que clama por uma nova forma de segurança pública. O problema aqui é que esses aparelhos de captura estão constantemente procurando se apoderar desse pensamento nômade (tal como grandes marcas que tem em seu ambiente de trabalho a normalização desse racismo estrutural) e utilizam de ferramentas como o marketing para fazer a manutenção de seu poderio comunicativo, utilizando hashtags em apoio aos protesto quando na verdade está buscando uma forma de aumentar o seu lucro empresarial. O marketing, nova forma de poder comunicativo do capital, buscou tomar o lugar de saberes e conhecimentos anteriores, buscando desterritorializar a filosofia para que pudesse se emergir como única ‘’ciência’’ que detêm o poder sobre os conceitos. Os coachings que estão surgindo aos montes, é uma forma de desterritorializar e reterritorializar a psicologia e filosofia.
‘’O Marketing reteve a ideia de uma certa relação entre o conceito e o acontecimento; mas eis que o conceito se tornou o conjunto das apresentações de um produto(histórico,científico,artístico,sexual,pragmático…), e o acontecimento, a exposição que põe em cena apresentações diversas e ‘’trocas de ideias’’ à qual supostamente dá lugar. Os únicos acontecimentos são as exposições, e os únicos conceitos, produtos que se pode vender’’[2]
A filosofia deleuziana e guattariana, é uma filosofia que pensa essa relação de fuga constante frente a captura, da liberdade em oposição à tirania. Uma das grandes ameaças a esses aparelhos revolucionários, se encontra em seu próprio agenciamento que não escapa da influência despótica do sedentarismo. O pensamento nômade deve estar atento a tal movimento, se sua finalidade for de fato, a busca por imanência, onde a hierarquia e a transcendência sejam, de fato, abolidas. ‘’Fazer passar fluxos, sob os códigos sociais que os querem canalizar, barrar’’[3]. Desse jeito, a própria história deveria ser desterritorializada em prol de uma história do nomadismo, uma ‘’contra-história’’ que dê conta de analisar os fluxos soltos, perdidos, excluídos, nômades. Nietzsche em um pequeno aforisma, faz uma defesa do modo de vida ‘’andado’’ frente ao pensamento sedentário[4]. Tanto para ele como para Deleuze e Guattari, a filosofia é uma forma de cortar raízes e plantar rizomas. Na leitura Nietzscheana, o sedentário é o niilista que nega a vida em prol de um ‘ideal’, seja ele Deus, transcendência ou ídolos. O movimento andado é uma forma livre de pensamento que subjuga o pensamento sedentário que é suscetível ao preconceito. Nietzsche diz que todos os preconceitos vêm das vísceras[5]. Assim, seguindo essa leitura nietzscheana, os autores vêem na figura do nômade um personagem conceitual de resistência, e no corpo sem órgãos, um transvaloração do corpo com ascendência revolucionária. O debate sobre a violência nas revoltas citadas, provoca conflitos com interesses e defesas de formas de vidas sedentárias e nômades. A violência engendrada pelo agenciamento estatal que provoca vítimas todos os dias, que não se limitam somente a vítimas fatais mas também a total indiferença e subjugação da diversidade, aparece como meio de revolta, onde vemos viaturas policiais e prédios em chamas. Ali está a reterritorialização dessas violência, que é utiliza para oprimir os fluxos dissidentes pelo sedentarismo estatal, e usada como ação direta pelos manifestantes da revolta. O movimento de deslegitimação da violência como meio da revolta, aparece aqui como fluxo codificado que serve ao aparelho de captura da máquina estatal, que procura a todo custo deslegitimar os manifestantes, separando-os em ‘’bons’’ e ‘’maus’’, ou ‘’pacíficos’’ e ‘’violentas. A procura da criminalização do movimento ANTIFA por meio do presidente Donald Trump, escancara o movimento de captura sob a opinião pública. As constantes fake news e deep fakes, explicitam essa tentativa de a todo custo de codificar fluxos dissidentes e linhas de fugas revolucionárias. ‘’Outro mundo é possível’’ seria por excelência a imanência cobrando a transcendência por todo esse tempo perdido, onde foi suprimida toda e qualquer forma de oposição concreta ao modo de vida capitalista que passa também pelo racismo estrutural, e defesa ampla de um modo de vida colonizado. A resposta vem das ruas, da revolta e do cansaço de ser subjugado pelas elites econômicas e raciais. Qual será o futuro desses movimentos? Sabemos que tentarão a todo custo capturar a revolta, por isso a filosofia de deleuze e guattari se mostra como crucial nesse enfrentamento. Cartografar sempre novos fluxos rizomáticos de liberdade, que escapem da captura, deve ser hoje o principal meio de ação direta nos movimentos sociais. Ler Deleuze e Guattari hoje, ironicamente retoma a frase célebre de Michel Foucault onde dizia que ‘’Um dia o século será deleuziano’’. O século XXI dá conta dessa afirmação? O que há de mais fantástico na filosofia dos autores é a sua capacidade de escapar de definições previamente concebidas. Uma filosofia militante a altura da sofisticação cada vez mais bruta do aparelho de captura do capital.
Notas
[1] (NIETZSCHE, 2009,P.33)
[2] (DELEUZE, GUATTARI, 2010. P.17)
[3] (DELEUZE, 2013 P.30)
[4] ‘’On ne peut penser et écrire qu’assis [Não se pode pensar e escrever senão sentado] (G. Flaubert) — Com isso te pego, niilista! A vida sedentária é justamente o pecado contra o santo espírito. Apenas os pensamentos andados têm valor’’ — (NIETZSCHE, 2017 P.12)
[5] (NIETZSCHE,2008 P.36)
Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução por: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
__________________. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2009. __________________.Crepúsculo dos ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. Tradução por Paulo César de Souza. -1ªed.-São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Tradução por Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. — São Paulo: Editora 34, 2010 (3ª edição).
_______________________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. Tradução de Ana lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. — São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição)
_______________________. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. tradução de Luiz B. L. Orlandi. — São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição).
DELEUZE. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. — São Paulo: Editora 34, 2013 (3ª edição) ________________
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Este artigo foi escrito por Felipe Cyrillo e publicado originalmente em Prensa.li.