Black Mirror e a Cultura do Cancelamento
"A grande tentação é a mentira. Menos por vontade de enganar do que por medo de confessar a si mesmo a vontade."
André Comte-Sponville
Existe um episódio do seriado Black Mirror (Espelho Negro) – vinculado pela Netflix – que é o último da terceira temporada chamado “Odiados pela nação”. O episódio é sobre as redes sociais que tem um impacto enorme no julgamento das pessoas num futuro – sempre no futuro – onde alguém lança uma hashtag e essa pessoa morreria. Como? Perfurada por abelhas drones que substituíram abelhas naturais, porque elas, simplesmente, desapareceram. Logico, são contos exagerados – tem que ser – para podemos fazer reflexões importantes.
Primeiro, existe uma cultura – que deram o nome de cultura do cancelamento – onde pessoas postam hashtags de ordens. Ora, talvez, esse episódio tenha a intenção de fazer esse tipo de reflexão. Por que eu tenho que odiar uma pessoa por causa de uma opinião? Pois, se pensarmos bem lá no fundo, as opiniões nem são conhecimento e, pode ser, que aquelas opiniões devam ser de um “personagem” que a pessoas inventam. Não podemos esquecer, que estamos na era das narrativas – o que chamo efeito LinkedIn – onde as pessoas sempre estão inventando coisas para agregar visualizações.
Inevitavelmente, temos que perguntar: o que seria a realidade e não-realidade? A questão da virtualidade já tinha sido discutida com Aristóteles – grande filósofo que viveu trezentos anos antes de Cristo e foi aluno de Platão e professor de Alexandre, o grande – onde ele dizia tudo tem um potencial de existência e tudo tem uma substância.
Mas, a visão moderna da realidade começa com o filósofo Rene Descartes (1596-1650), onde ele começa a questionar a realidade com a famosa frase “penso, logo existo”. O que quer dizer? Posso duvidar de tudo que existe, mas, não posso duvidar daquele que percebe a realidade.
Por outro lado, Descartes tem uma falha inevitável: como posso saber se estou refletindo com meu “eu” verdadeiro? A equação é muito simples. Existem o “eu” que é a minha essência construída com meus valores e minhas descobertas afetivas e racionais. E um “eu” social que tem como objetivo, ser aceito na sociedade.
Podemos dizer que a grande maioria não gosta de mostrar o “eu” que está na sua essência. Entramos no budismo. Pelo menos, no budismo verdadeiro sem ser o budismo coach. O budismo diz que a maioria dos seres humanos – que eles chamam de seres – percebem uma realidade ilusória (MAYA). Por quê? Porque nossos órgãos sensoriais são limitados os condicionados. Segundo os filósofos budistas, nós enxergamos apenas uma pequena parte do que chamamos de realidade, e como tomamos como realidade como tal, sempre caímos em uma ilusão.
A coisa é bem simples. A realidade é ilusória, mas não significa que possa existir uma outra realidade. Diferente da nossa cultura binaria, os budistas dizem que o problema é o julgamento daquilo. Por exemplo, todo mundo sabe que existe a ultravioleta e o infravermelho, mas, não percebemos com nenhum sentido essa parte muito pequena do espectro eletromagnético. Ou seja, se percebe uma pequena parte da realidade e caímos em uma ilusão.
Na essência, o que os filósofos budistas dizem, o grande problema é o julgamento. Muito parecido com o ataraxia dos estoicos. A suspensão do juízo das coisas. Temos uma ideia de mundo – digo, nós ocidentais – de bem e de mal. Porém, não sei se existem. A noção de bem e mal é muito dicotômica e não reflete a realidade de fato. Uma abelha que te pica, não faz por maldade, ela só responde ao instinto dela de proteção. Ou seja, o não julgamento faz você enxerga uma abelha como um ser necessária dentro da natureza, e que ajuda a preservar as flores. Nem mesmo esse sistema é bom ou ruim, ele é necessário dentro do ecossistema para funcionar e preservar a vida no nosso planeta.
Talvez, por isso mesmo, os orientais têm uma outra relação com a tecnologia. Para eles, um homem pode se relacionar com uma boneca robô, pois, ela existe por existir. É um instrumento. Claro, nesse caso, existe toda uma discussão de o ser humano se tornar seres instintivos e racionais (apáticos), do que afetivos e mais humanos (empáticos). Mas, sem dívida nenhuma, a tecnologia e as redes sociais são instrumentos de disseminação de informação, mas, ela sozinha não faz nada e nossa cultura não se relaciona bem, porque nossa cultura é binaria. Não existe o bem e o mal, existe a ignorância e o conhecimento.
Sponville tem razão. A grande tentação é a mentira. Porque não se assumi ela, menos por vontade de enganar do que por medo de confessar a si mesmo a vontade. Como é mostrado no episódio – tanto o artigo da jornalista, a opinião do rapper ou a foto da mocinha no monumento – são apenas imagens, pixes, personagens, e tudo mais. Aquilo não existe. Foi uma fração de um momento e esse momento virou ódio.
No final – isso podemos ligar com o conceito de causa e efeito – o ódio se virou contra aqueles que escreverem a hashtag. Podemos dizer, que Black Mirror, também, pode educar. Mostrar, que hoje se julga o outro, mas, do mesmo modo, pode julgar você e quem você gosta.
Este artigo foi escrito por Amauri Nolasco Sanches Junior e publicado originalmente em Prensa.li.