Activision Blizzard: pedir desculpas não é a solução
No dia 20 de julho, o Departamento de Moradia e Emprego Justo (DFEH) da Califórnia entrou com uma ação judicial contra a Activision Blizzard após coletar "inúmeras reclamações sobre assédio ilegal, discriminação e retaliação" na empresa.
Funcionários com quem o DFEH falou disseram que a Blizzard tem uma cultura de "menino de fraternidade" e que tem sido um "terreno fértil para o assédio e a discriminação contra as mulheres".
Desde então, mais de 3.000 funcionários da Activision Blizzard assinaram uma carta aberta à gerência, falando pelas vítimas e pedindo "declarações oficiais que reconheçam a seriedade das alegações e demonstrem compaixão pelas vítimas de assédio e agressão."
No início, a empresa rapidamente negou as acusações no processo, mas o escândalo está crescendo.
Tanto os atuais quanto os ex-executivos reagiram com horror à investigação, e um número crescente de funcionários da Activision Blizzard compartilharam suas próprias experiências problemáticas de trabalho na desenvolvedora.
Não está claro se isso levará a uma avaliação mais ampla na indústria de jogos, mas há claramente muito o que contar.
Aqui está o que você deve saber.
O que é a Activision Blizzard e por que essa empresa é tão importante?
A Activision Blizzard é um gigante da indústria de videogames. Ela emprega 9.500 pessoas, é membro da Fortune 500 e S&P 500, além de possuir a maior rede de jogos do mundo em termos de base de usuários.
A empresa foi formada em 2008 por meio da fusão de dois gigantes dos videogames: Activision Inc. e Blizzard Entertainment.
Além de Call of Duty e World of Warcraft, a editora também é conhecida por títulos como Diablo, Starcraft, Overwatch e Candy Crush.
Quais são, exatamente, as acusações contra a Activision Blizzard?
As alegações apresentadas no processo caem em duas categorias relacionadas, mas distintas: práticas discriminatórias que diminuem seriamente os salários das funcionárias e as perspectivas de progressão na carreira e um ambiente de escritório de "menino de fraternidade" que, de acordo com os investigadores, incentiva o assédio sexual generalizado.
Quando se trata de desigualdades profissionais, o DFEH constatou que as funcionárias da Activision Blizzard sofrem desvantagens em vários níveis: Cerca de 20% da força de trabalho da empresa é feminina, mas, como afirma o processo, apenas homens brancos ocupam cargos de liderança de topo.
Os reguladores da DFEH também cobram que as mulheres recebam consistentemente salários iniciais mais baixos, ganhem menos por fazer “trabalhos substancialmente semelhantes” aos de seus colegas homens em todos os níveis da empresa e ocupem mais cargos juniores com menos oportunidades profissionais.
As mulheres na Activision Blizzard também costumam ser deixadas de lado em promoções que, em vez disso, vão para homens com menos experiência e tempo de trabalho na empresa. O processo descreve uma série de incidentes específicos onde isso supostamente aconteceu.
Em um caso, uma funcionária supostamente estava realizando o dobro de campanhas de marketing e arrecadando muito mais receita do que seu colega homem.
No entanto, apenas ele conseguiu comparecer a reuniões individuais regulares com um executivo de alto escalão e, eventualmente, venceu-a em uma promoção.
Em outro caso, uma mulher assumiu algumas responsabilidades administrativas e pediu uma promoção e aumento proporcionais, mas seu supervisor supostamente disse a ela que estava preocupado que ela engravidasse e “gostaria de ser mãe demais para honrar essas exigências”.
“Os réus promovem as mulheres mais lentamente e as demitem mais rapidamente do que os homens”, diz o processo. “Diante de termos e condições de trabalho tão adversos, muitas mulheres foram forçadas a deixar a empresa.”
De alguma forma, fica ainda pior na outra metade do processo, que diz respeito à alegações sobre uma cultura de trabalho na qual os homens regularmente assediam sexualmente e rebaixam suas colegas do sexo feminino.
Os reguladores afirmam que os funcionários do sexo masculino da Activison Blizzard muitas vezes participam de "maratonas", em que bebem excessivamente e visitam várias mesas, tateando e fazendo comentários sexuais sobre mulheres no escritório ao longo do caminho.
Esses funcionários também costumam falar de modo esdrúxulo sobre estupro, fazem avanços sexuais inadequados, delegam trabalho a suas subordinadas enquanto jogam videogame, expulsam mulheres das salas de lactação para realizar reuniões e criticam mães por deixarem o trabalho para pegar crianças da creche.
As mulheres que abordam essas questões com o RH, afirma o processo, veem suas preocupações afastadas e muitas vezes enfrentam retaliação na forma de demissões e transferências involuntárias.
O processo afirma ainda que as mulheres negras são particularmente vulneráveis à essa discriminação.
A agência da Califórnia está buscando uma liminar que forçaria a Activision Blizzard a dar salários não pagos, salários atrasados, ajustes salariais e salários perdidos para mulheres na empresa.
Também exigiria que a empresa fornecesse proteções no local de trabalho exigidas por lei.
O incidente mais perturbador descrito no processo tem a ver com o suicídio de uma funcionária. Os Reguladores escreveram:
Um trágico exemplo de assédio que os Réus permitiram que ocorresse em seus escritórios, uma funcionária cometeu suicídio durante uma viagem da empresa devido a um relacionamento sexual que vinha tendo com seu supervisor.
O supervisor foi descoberto pela polícia por ter trazido um plug anal e lubrificante nesta viagem de negócios.
Outra funcionária confirmou a vítima pode ter sofrido outro tipo de assédio sexual no trabalho antes de sua morte. Especificamente, em uma festa antes de sua morte, colegas de trabalho estariam compartilhando imagens íntimas da vítima.
Apenas duas pessoas foram nomeadas diretamente no processo: o presidente da Blizzard J. Allen Brack e Alex Afrasiabi, o ex-diretor de criação do World of Warcraft.
Qual foi a resposta da Activision Blizzard?
A empresa divulgou um comunicado tempestuoso no dia 21 de julho, descrevendo as alegações da agência como imprecisas e mais representativas do passado da empresa, “O DFEH inclui descrições distorcidas e, em muitos casos falsas, do passado da Blizzard”, diz a declaração.
“Eles são obrigados por lei a investigar adequadamente e a ter discussões de boa-fé conosco para melhor entender e resolver quaisquer reclamações ou preocupações antes de ir para o litígio, mas eles não o fizeram.”
A empresa afirma que o processo exemplifica o “comportamento irresponsável de burocratas irresponsáveis do Estado” que está supostamente fazendo com que as empresas deixem a Califórnia.
A Activision Blizzard também se ofendeu com a inclusão do suicídio da sua ex-funcionária no processo, “Estamos enojados com a conduta repreensível da DFEH de arrastar para a denúncia o trágico suicídio de uma funcionária cujo falecimento não tem qualquer relação com este caso e sem consideração por sua família enlutada”, disse no comunicado.
A empresa afirmou que não tolera discriminação ou assédio e que investiga seriamente as reclamações dos funcionários.
O presidente da Blizzard está fora, estúdio será co-liderado por uma mulher pela primeira vez
Após o CEO da Activision Blizzard, Bobby Kotick, prometer uma resposta rápida à situação, na última terça feira (03), foi anunciado que J. Allen Brack estaria deixando sua posição como presidente do estúdio, para ser substituído por Jen Oneal e Mike Ybarra como co-diretores do estúdio.
Jen Oneal está na Blizzard desde janeiro, antes disso ela foi a chefe do estúdio da Vicarious Visions. Mike Ybarra era um executivo de longa data da Microsoft, trabalhando com o Xbox e ocupou diversos cargos antes de ingressar na Blizzard em 2019, como vice-presidente executivo.
A saída de Allen Brack se deu após o ex-presidente ser citado no processo da Califórnia, sobre como ele lidou com as acusações feitas contra Alex Afrasiabi, os relatórios dizem que este bebia demais e assediava funcionárias em eventos da empresa.
Não é só a Blizzard que cultiva um ambiente tóxico
Os detalhes do processo da Activision Blizzard soam perturbadoramente familiares a muitas alegações passadas e recentes de abuso no local de trabalho em estúdios de videogame.
Os funcionários da Riot Games, mais conhecida por sua franquia League of Legends, saíram em 2019 em resposta às persistentes alegações de assédio sexual da empresa, bem como sua política de arbitragem forçada.
Um extenso relatório do Kotaku revelou a cultura de fraternidade da empresa, que incluía alegações assustadoramente semelhantes ao processo da Activision Blizzard.
Embora a Riot tenha desde então feito esforços para aliviar seus problemas no local de trabalho, a empresa também foi sujeita a um acordo de US $ 10 milhões pago a funcionárias depois de ser processada pelo estado da Califórnia.
A Ubisoft, outra grande desenvolvedora e editora, foi criticada no ano passado após alegações de assédio sexual público e um ambiente de trabalho tóxico que a empresa permitiu que acontecesse.
Embora alguns executivos da empresa tenham sido demitidos por conduta inadequada, a carta enviada por funcionários de 32 estúdios da Ubisoft exige mais responsabilidades.
No documento, funcionários afirmam que a editora “só demitiu a maioria dos infratores públicos” e que a cultura da Ubisoft não evoluiu suficientemente.
Em 2019, o NetherRealm da Warner Bros. Interactive, o estúdio por trás da franquia Mortal Kombat, foi acusado de cultivar um ambiente de trabalho tóxico repleto de cultura de “fraternidade” e práticas abusivas.
Esse são só alguns dos exemplos de grandes editoras que foram acusados de perpetuar um ambiente machista.
O processo da Activision Blizzard reflete as alegações dentro da indústria de jogos como um todo.
Se um dos maiores fabricantes de videogames do mundo sofrer um processo público, isso poderia encorajar outras agências e funcionárias a expor abusos no trabalho que permaneceram ocultos por anos.
Precisamos falar sobre a indústria de jogos
Embora a situação ao qual a Blizzard se encontra possa servir de grande exemplo para encorajar funcionárias de outras empresas a denunciar e reivindicar seus direitos, uma parte de nós, mulheres, fica descrente a cada nova promessa e pouca mudança.
É verdade que alguns indivíduos acusados de assédio ou agressão sofreram consequências. Mas remover os perpetradores um a um depois que eles causaram o dano não desfaz esse dano nem impede sua disseminação mais ampla no futuro.
Os homens criam seu próprio comportamento, mas não são os únicos responsáveis por ele. Somente um sistema que permite o abuso pode aceitar que tantos infratores floresçam em todo o setor.
A única maneira de resolver esse problema são os responsáveis admitirem a verdade: que eles falharam em proteger suas colegas na intenção de proteger os abusadores e criar locais de trabalho tóxicos.
Por anos, mulheres, pessoas não binárias e outras vítimas de assédio recorreram a redes discretas para buscar apoio e manter-se seguras.
Alguns movimentos foram criados para dar esse apoio, a exemplo do #MeToo, que atuou em plataformas como o Twitter e ajudou a amplificar essas histórias, dando novo poder àqueles anteriormente forçados a backchannels ou que foram silenciados.
As vítimas que se manifestam o fazem com um enorme custo pessoal. Vítimas barulhentas historicamente enfrentaram listas negras ou retaliação depois de se manifestarem, e a indústria de jogos não é diferente.
Apresentar-se online também significa ondas de assédio de bases de fãs e até ameaças de ação legal por parte dos acusados. É um trabalho feio e cruel que coloca um fardo hediondo sobre os indivíduos para impedir os assediadores, em vez das instituições que os armam.
É insustentável que a vítima tenha que se expressar pelas redes. O Twitter não consegue nem mesmo proteger seus funcionários de assédio, quem dirá pessoas de outras empresas. É trágico ver essa falha dos sistemas atualmente em vigor que afirmam manter as pessoas seguras.
A escolha que as empresas tomam para dizer que estão arrependidos e irão mudar a política interna não é a certa.
As empresas têm uma obrigação ética com seus funcionários de fornecer ambientes de trabalho seguros. O mau comportamento de uma pessoa não afeta apenas aqueles que ela vitimiza, é uma fonte de trauma secundário para os colegas.
Se não for controlado, é um veneno que se espalha para qualquer pessoa ligada ao culpado. Conforme a atual cultura de assédio, ela pede que os indivíduos façam o trabalho.
A responsabilidade deve ser um compromisso da comunidade, mas especialmente dos homens que desejam reivindicar a aliança.
É verdade que as mulheres podem ser abusadoras e os homens podem ser abusados; ainda assim, a indústria de jogos, em particular, demonstrou um padrão de dano predominantemente masculino.
Os homens devem responsabilizar seus colegas do sexo masculino, tanto no trabalho quanto fora dele. Ficar de braços cruzados não faz parte desta conversa.