Boneca Russa: Melhor a cada camada, digo, temporada.
Imagem: Netflix / Divulgação
Fevereiro de 2019 parece ter sido há uma vida atrás, ou várias vidas, se você for Nadia Vulvokov. Foi quando Boneca Russa estreou na Netflix, trazendo Natasha Lyonne, uma querida atriz de Orange is the New Black, para seu merecido holofote como protagonista presa em um loop temporal.
Nadia está celebrando seu trigésimo-sexto aniversário quando sai da festa, é atropelada e — no melhor estilo Feitiço do Tempo — volta ao início da série. Ela está no mesmo banheiro, com a mesma música tocando e as absurdas memórias do que acabou de acontecer. A partir daí ela morrerá de novo e novamente e uma vez mais e de novo enquanto tenta entender o que (palavrão de sua preferência) está acontecendo.
É o tropo do Dia da Marmota? É. É muito mais do que isso? Com certeza!
Curiosos devidamente recomendados e desavisados apropriadamente informados, espero que todos corram para a Netflix e assistam. Daqui pra frente são opiniões sobre a segunda temporada de Boneca Russa com o mínimo de spoilers possíveis, por quem acabou de assistir e ainda vai passar uns dias com a cabeça girando.
Boneca Russa traz consigo tanta coisa para se pensar sobre a série, a vida e até sobre a nossa própria vida. (imagem: Divulgação/Netflix)
Terça-feira, que grande conceito.
Chegamos a terça-feira. A bem da verdade, chegamos há quase 4 anos. O que parecia uma série fechada em uma única temporada ganhou uma sequência e a indagação: "Pra onde vão levar a história sendo que não deixaram pontas realmente soltas?"
Boneca Russa começou bem, uma divertida e comovente narrativa de loop temporal. Repetir a fórmula dificilmente traria o mesmo nível de qualidade e é justamente isso que mais costuma acontecer no audiovisual quando algo faz sucesso, mas não aqui. Aqui dentro da primeira matrioska existe uma boneca diferente, uma de viagem no tempo.
Agora, mais importante que o dia, é o ano. 2022, 1982, 1962... Se Marty McFly fez uma acidental ida ao último ano do colegial de seus pais e acabou dando uma melhorada na vida deles, Nadia vê no vagão que a leva para o corpo de sua mãe pouco tempo antes de seu próprio nascimento como a chance de recuperar o tesouro familiar perdido e curar feridas de três gerações.
Que trem mais louco esse trem de entrar num vagão e sair em outro lugar no tempo e no espaço. (Imagem: Divulgação/Netflix)
Entre estações do metrô e numerosas referências a David Bowie, apreciamos uma história singular, que vai de resolver o passado a aceitar a inefabilidade do tempo enquanto vislumbramos futuros levemente diferentes e duramente semelhantes no que tange a cada desfecho.
Epifanias e vazios existenciais
A segunda temporada de Boneca Russa parece começar tão em lugar-comum quanto a anterior. Novamente, o diferencial acontece em seu desenvolvimento singular.
Em uma espiral que parte de "se eu mudar isso, tudo seria melhor", vemos cada episódio ascender mais um degrau ao patamar de questionamentos metafísicos e quânticos (no sentido físico, sem a deturpação dos coaches). Indagações sobre a vida; autoaceitação; presentes e maldições hereditárias que marcam o início de cada viva e outros tópicos igualmente capazes de nos atrapalharem a dormir à noite...
Admito que comecei questionando por quê deveríamos acompanhar Alan e sua avó pela Alemanha socialista, mas é justamente sua presença que garante um contraponto e tira Nadia de sua fixação por agir primeiro e pensar depois. É ele quem entende que essa jornada é de aprendizado, Alan não pode mudar as vidas de sua avó e de sua mãe, mas encontra no passado respostas e as utiliza para fazer melhorias no presente, quando realmente podemos fazer algo a respeito.
É fascinante ver como a jornada de seus antepassados definiu o ponto de partida dos dois personagens, da mesma forma que define a nossa. Terminei a série refletindo sobre como somos o legado das decisões dos que vieram antes de nós e de como saber seu ponto de partida ajuda a planejar melhor seu ponto de chegada.
Família é um negócio complicado, nem os comerciais de margarina conseguem manter aquela fachada mais. Gestos, ações, atitudes e decisões tomadas por parentes marcam pra vida. Os traumas causados a Vera (e milhões de outras pessoas) pelos nazistas, moldaram muito mais que o país de nascimento de sua filha e de sua neta, transmitiram e geraram novos traumas em Lenora e Nadia.
Quando criança, achava que herança de família era coisa de rico que passava na televisão. Hoje sei que existe herança genética e até traumas podem ser passados de geração em geração sem gastar um centavo! (Imagem: Divulgação/Netflix)
Ao mesmo tempo em que me faz ter vontade de entrar em ônibus lotados (afinal, Brasil) e tentar corrigir o rumo de antepassados, Boneca Russa ensina a dura lição de que o que aconteceu já aconteceu e não pode ser alterado. Melhor usar essa sabedoria para tratar velhas cicatrizes e evitar novas.
Sobre o que ainda falta refletir?
Boneca Russa foi inicialmente oferecida à Netflix como uma série de três temporadas, talvez o segredo do desfecho esteja no nome da protagonista. Nadia é uma variação do nome Nadezhda, significa "esperança" em vários idiomas da Eurásia, e suspeito que seja o plot da próxima jornada.
Começamos com Nadia aprendendo a viver o presente na primeira temporada, sendo um pouquinho menos cínica e fechada com o mundo. Agora a vimos se acertando com seu passado e aceitando que certas coisas simplesmente não podem ser alteradas. Para a terceira temporada de Boneca Russa, é o futuro que fará abstrair, progredir e rir.
Essa temporada foi ainda melhor que a anterior. Se conseguirem manter essa progressão para a terceira temporada de Boneca Russa, podemos esperar por um desfecho antológico na história da televisão.
Não sou capaz de prever o futuro de Nadia Vulvokov, mas o meu certamente envolve assistir e reassistir Boneca Russa na Netflix até entender cada camada desta matrioska. Se der sorte, o seu também.
Uma gloriosa jornada de autodescoberta para Nadia e seus expectadores. (Imagem: Divulgação/Netflix)
Este artigo foi escrito por Gustavo Borges e publicado originalmente em Prensa.li.