Café frio
Ao fim do dia, quando se volta para casa, tudo se resume a cansaço. Você abre a porta e é recebido pelo silêncio gritante que preenche as paredes finas e desocupa as prateleiras.Na mesa da cozinha, o café frio, intacto, espera ansiosamente por um destino, como você, que espera ansiosamente por um destino.
Cansaço é como café frio. Amargo e desolador, exemplo banal do que um dia fora.
Intacto, você passa por dias lentos de horas súbitas, arrastando seus ombros caídos e seus calçados torpes, fitando o chão à espera de encontrar pedaços do que um dia fora.
Ao fim do dia, você desaba no sofá, esgotado e frio, como se tivesse passado milênios fora de casa. Progressivamente, a monotonia te consome e a correria te esgota. Você atravessa dias iguais, sem se atentar minimamente a qualquer coisa e seus ossos desfalecem, enquanto a poesia do tormento é cravada em suas olheiras profundas e rugas persistentes.
Ao fim do dia, quando se volta para casa, tudo se resume a cansaço. Você ouve os mesmos discursos todo dia, come as mesmas coisas, caminha pelos mesmos trajetos, assiste aos mesmos filmes, escuta as mesmas músicas, repete as inutilidades cotidianas mecanicamente. Todo dia você engole o café frio e nem percebe.
Ao fim do dia, quando se volta para casa, você dá de cara com a impossível veracidade do trivial cansaço, o café frio, as horas, os deveres, as contas. Você se sente um forasteiro em si mesmo, transitório, sufocado pela inquietação esquelética à espera de um destino.
Ao fim do dia, o que te cansa são as censuras discretas de imposições intransigentes, as discrepâncias expostas e ignoradas todo dia, os atritos inúteis por coisa alguma que golpeiam pessoas decentes, as resistências arrogantes, os desfiles mesquinhos, as omissões.
O cansaço é, no fim das contas, o encargo que esmaga suas costas, lancina suas têmporas e te regala com cabelos brancos.
Ao fim do dia o que te cansa é a obrigação de suportar quieto tantos insultos e fantasiar-se de outra pessoa só para caber num ridículo molde enferrujado.
Ao fim do dia o que te cansa são as viagens não feitas, os abraços não dados, os livros não lidos, as palavras não ditas, as impossibilidades. O que te cansa é a mediocridade costumeira, torturante, ignóbil.
Intacto, pela janela você observa o sol ruindo aos poucos como se estivesse envergonhado, recolhendo seus últimos raios abatidos.
Você liga a tevê e se vê hipnotizado pela radiação das mesmas notícias do dia anterior. Guerras, confrontos, feridos, subornos... e a previsão do tempo.
A solidão afrontosa, os livros empoeirados e o café frio te encaram a espera de alguma resposta. Qualquer resposta. No fim das contas você tem o hábito de tomar café frio não por preferência, mas é algo inevitável, quase uma imposição, uma alternativa vulgar que suaviza a angústia de ser.
Ao fim do dia você é café frio.
Este artigo foi escrito por Rebeca Borges e publicado originalmente em Prensa.li.