O Canto de Sua Majestade
Todo ano é igual. Não apenas os campos e florestas do interior, mas também as metrópoles ou centros urbanos, são agraciados pelos mais belos gorjeios que a natureza propicia à Humanidade. Trata-se do canto do sabiá.
Simbolizando e prenunciando a estação da primavera, esse pássaro, cujo timbre gutural parece ser obra dos deuses (ou de Deus, em respeito aos cristãos mais arraigados), dá o ar de sua graça exatamente nos primeiros dias de setembro, às vezes fins de agosto.
Acontece que o sabiá passa a maior parte do ano caladinho, como se estivesse guardando forças para que suas cordas vocais exerçam a plenitude da potência – e encantamento, puro deleite da mãe natureza – justamente durante todo o período da primavera até o limiar do verão seguinte.
Considerado o pássaro dotado de canto mais sublime para os ouvidos humanos, semelhante ao som emitido pelas flautas, o sabiá, especialmente o laranjeira – existem cerca de 300 espécies da família dos turdídeos disseminadas mundo afora –, tornou-se por lei (Decreto nº 63.234, de 1968) a ave-símbolo do Brasil, sendo o Dia da Ave celebrado anualmente em 5 de outubro.
O Tordo
Para se ter uma noção da diversidade, estão entres essas aves, classificadas genericamente como tordo, além dos sabiás, também os rouxinóis e os melros. Tordo, a propósito, foi o termo prosaico como traduziram, por aqui, nos livros e na trilogia cinematográfica “Jogos Vorazes”, o pássaro-símbolo ostentado pela heroína Katniss Everdeen. A ave singular, intitulada mockingjay, consistiria, na realidade, em uma espécie resultante do cruzamento de uma rouxinol fêmea com um fictício jabberjay (gaio tagarela, na versão brasileira).
Mas, curiosidades à parte, foquemos em nosso principal personagem aqui, o sabiá-laranjeira. Este, inacreditavelmente, virou alvo de irados protestos na capital paulistana há alguns anos, exatamente em virtude de exercer seu dom divino: o canto.
Ocorre que muitos moradores da cidade começaram a ter seus ouvidos incomodados com as notas estridentes produzidas por essas aves durante seus sonos em plena madrugada, visto que a maioria da passarinhada não dá um pio no período em questão, com exceção talvez da discreta coruja.
Pesquisa Esclarecedora
Um estudo conduzido a partir de 2013 revelou, todavia, a razão: os sabiás passaram a escolher as madrugadas para cantar por questão de mera sobrevivência. Ou seja, pelo fato de serem aves que se evidenciam pela voz melíflua apenas na primavera, precisam se comunicar umas com as outras, até por razões de acasalamento, por isso o alto volume de suas notas observado em horários nos quais não existe a concorrência da poluição sonora própria das grandes cidades, principalmente a decorrente do trânsito nervoso dos automóveis.
Responsável pela pesquisa, Sandro Von Matter, do Instituto Passarinhar, ensina: “se o canto dos seus vizinhos emplumados está lhe tirando o sono, o maior culpado está logo ali estacionado na sua garagem ou na frente de sua casa. Que tal deixar o carro ou a moto de lado ao menos uma vez por semana e optar por um modo de transporte alternativo? Os sabiás de São Paulo agradecem.”
Pois bem, estamos justamente naquele momento do ano em que os sabiás difundem os primeiros trinados, sendo possível reconhecê-los com facilidade, bastando apurar um pouco o ouvido sob as árvores (o YouTube pode auxiliar nessa tarefa, confira aqui).
A Sabiá Marilyn
Por fim, deixo agora relatada uma pequena história sobre o sabiá (ou especificamente uma certa espécime fêmea), protagonizada por uma compositora que em 1985 era uma ilustre desconhecida, até ter a sorte de encontrar Jair Rodrigues numa de suas insistentes acorridas às gravadoras, desta feita, a Continental.
Carente de uma canção para selar o primeiro disco que levaria seu nome na gravadora para a qual estava se transferindo, após 25 anos na Philips, o célebre intérprete da obra-prima de Geraldo Vandré “Disparada”, vitoriosa do Festival de Música Popular Brasileira de 1966, recebeu da jovem aspirante à cantora Roberta Miranda uma música que lhe revigorou a carreira e fez a vendagem do álbum atingir mais de um milhão de cópias.
De fato, como homenagem à sabiá Marilyn, presente de sua cabeleireira Wanda, que a salvara de um infame despejo, dando-lhe abrigo em sua casa, Roberta Miranda compôs, provavelmente em êxtase, por noites a fio, provocado pelos melosos trilados da ave, talvez o maior sucesso da carreira – com providencial auxílio de um grato Jair Rodrigues –, “A Majestade, o Sabiá”.
Excluindo talvez alguns poucos insones cidadãos, alguém discordaria de tamanha realeza?
Imagem de capa - Autor
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Este artigo foi escrito por Roberval Lima e publicado originalmente em Prensa.li.