Caos e casulo
Excelência nas mínimas coisas e a recompensa vem com o passar das horas. Ninguém me conhece melhor do que eu mesma e o passado não foi fácil; o presente, eu levo na maciota e o futuro ainda não tem texto pronto, ainda que o investimento seja copioso. Tenho uma única agenda há seis anos. Personalizei o tempo. Todo o cotidiano em um único espaço e sinto que economizei dinheiro ao condensar esse período todo no mesmo lugar.
Pouco organizada, acumulei senhas, endereços e linhas de ônibus que me foram úteis enquanto precisei. Confesso que anotar quase tudo não evitou a procrastinação, mas alcancei todos os objetivos a que me propus. Vinte e cinco de novembro e às 16:48 estou continuando esse texto até o horário de trabalhar. O tempo do intervalo pode ser bem aproveitado. Café às 15:34 e, uma hora depois, o parágrafo fica superfaturado.
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Estar bem para cuidar bem do outro e as prateleiras estarão cheias de literatura. Meu relógio administra todos os campos da vida e todos convergem para as letras. Investe em você e nunca terás tempo ou dinheiro perdidos. Foi o que eu fiz. Horas e horas dedicadas à leitura e comecei a misturar autores e ideias.
O mix aconteceu de modo satisfatório e acumulo seguidores, mas não ficarei abatida se a lei da gravidade estabelecer seus efeitos. Ficará a essência cuja beleza me parece atemporal. O desenho das experiências é feito a partir de um filtro onde quase tudo faz sentido. Quando tudo fizer sentido, não haverá mais o que escrever e percebo, então, que uma pequena dose de caos no cotidiano pode ser a cereja do bolo.
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Estou em casa e vejo como tem força essa linguagem pouco minimalista que a narrativa me oferece. São 13:13 do dia seguinte e o discurso parece solto se deixo de concluir o parágrafo no mesmo dia. É preciso um relógio para realinhar o pensamento com o discurso de uma página atrás. Então vamos.
O presente que eu levo na maciota é revigorante. É preciso suavidade para a costura perfeita. Saber curar as feridas da automutilação ou de ataques externos me parece uma arte em tempos onde muitos de nós somos levados a calar para ficarmos bem na foto. Para o futuro que ainda não tem texto, eu compro cadernos, na contramão do teclado.
O ato de personalizar o tempo me dá mais espaço para superfaturar o parágrafo. Se curto, parece-me que falta algo. Se abundante, por vezes pode deixar o leitor exausto. Apenas o tempo me dirá o que vale a pena em uma escolha deste tipo.
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Faz a decisão que mais te assusta e começarás a se livrar das amarras do discurso materno. O que antepassados conquistaram ou perderam já não te diz respeito. Hoje são sombras que interagem com ou sem o teu consentimento e a hora é tua. Reconhece a tua procedência e caminha.
Não pode viver em estado de guerra com tuas entranhas, invisíveis a todos. Caso assim queira, reserva um horário fora do expediente cotidiano e medita. O mais é ladainha. As vantagens de uma linguagem pouco minimalista está em facilitar o registro de longos relatos guardados nas lembranças tuas de cada dia.
O processo de rastreamento das lembranças não é fácil, eu o sei, mas teremos tempo para isso se nos dedicarmos em demasia.
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O casulo. Quando penso que uma lagarta pouco admirável se transforma em borboleta após um determinado processo, não me admiro se o que há de mais asqueroso em cada um de nós ganhar exuberância após um certo período de tempo. Sem pressa. Se levamos nove meses para sair das entranhas maternas, [e isso pode parecer muito tempo], nada impede que uma vida inteira seja dedicada a buscar uma transformação.
Encontrado um lugar seguro fora do ventre da mãe e não temos limites. Eu li que uma pupa não come e pouco se move. Não seja uma. Alimenta-se, move-se e o processo será exitoso. Vasculha prateleiras cheias de literatura escritas por quem um dia se cuidou bem e compreenderás o que te falo.
O mais impressionante acontecerá quando tua autobiografia for investigada por teus sucessores. Talvez estejas em outro processo de transformação. A vida é feita de ciclos. Coloca duas colheres de sal e sirva a gosto.
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O DNA do escorpião
Ainda não desfruto do serviço de acesso ao reconhecimento da negligência histórica das emoções humanas. Sei de investimentos privados no setor e ainda não tenho roupa para isso. Tem horas em que é melhor ficar no casulo, visão estratégica de quem ainda não pode intervir significativamente no curso não-natural do processo de metamorfose.
Fico a olhar as janelas pontos de luz do outro lado da tela. Pessoas ali estão no interior do casulo enquanto a vida é denunciada no telejornal. Na manhã seguinte, saem para trocar experiências e beber com moderação na mesma mesa na qual ontem um DNA invisível pediu um mínimo e recebeu um não como resposta. “Oh my gosh. Vida que segue”.
A entonação fria na hora do rush ouve Clube da Esquina II: “E lá se vai mais um dia...”. Feito o devido recorte na letra, repete o canto. Troca por Lulu Santos. “Que eu tô voltando pra casa outra vez”. Tem a “cama pronta”. Tem para onde voltar, apesar do relógio parcelado em dez vezes no cartão de crédito.
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.