Casos e acasos da língua
Estudos linguísticos são fascinantes. É possível entender a história através das expressões, falas e misturas. Ajuda a dimensionar a força da cultura na formação do que é ser brasileiro.
Olhar a interação entre o português e o tupi – tronco mais falado no litoral brasileiro pelos indígenas – rende pistas importantes de nossa sociabilidade, caracterizada pela criatividade e adaptação.
A colonização portuguesa nos trópicos impôs, na força, a religião cristã aos habitantes desta terra. Para catequizar era preciso antes se comunicar. Não à toa o primeiro esforço dos jesuítas foi justamente linguístico, entender o tupi era a chave para introduzir o evangelho.
Das consequências desse contato extraímos o contexto cultural: envolve crenças, artes e costumes. O que une as línguas é a cultura. Construímos um Léxico comum com influências mútuas(além das de origem africana, claro).
Léxico – leque de palavras.
Para compreender a cosmovisão cristã, os nativos muitas vezes recorriam a associações – como fazemos até hoje o tempo inteiro – implicando metáforas. Estas podem estabelecer aproximações entre diferentes imagens através de formas e cores.
Uma linda forma de chamar essas metáforas da língua, que fundem sentidos, é o termo “culturema”, cunhado pela linguista Cláudia Maria Xatara.
Esses fenômenos não obedecem regra específica - são filhos do caos probabilístico (porque o fruto cai da árvore, se ele sai de dentro dela?). Depende de atitudes individuais que atribuam significados às experiências e sejam incorporados socialmente.
Assim podemos contar um exemplo – símbolos cristãos associados à flora brasileira. “Chorar lágrimas de sangue”, provavelmente inspirada do capítulo 22, versículo 44 do Evangelho de São Lucas, onde, no caminho da crucificação se diz do aspecto de Jesus: “e o seu suor era como gotas de sangue que caíam no chão”.
Ou vem do fato de quem chora muito fica com o olho vermelho.
A expressão indica angústia profunda, lástima, em situações extremas.
Parece que era comumente usada por portugueses ao se referir à convivência com os indígenas; estes, indiferentes à referência, associam lágrimas de sangue, impossíveis aos seus olhos, à fruta pitanga, parecida com uma gota e de cor vermelha. Surge, então: chorar as pitangas*.
Pitanga, em tupi, é vermelho.
Esse culturema genuinamente brasileiro, entra no léxico português falado aqui e seu significado acaba sendo, literalmente, chorar lágrimas de sangue.
O presente das heranças
De tempos em tempos surgem notícias de novas fontes historiográficas ou novos estudos sobre essas interações.
Recentemente, foram traduzidas cartas trocadas por indígenas, escritas em tupi antigo, falando sobre a invasão holandesa em Pernambuco, no longínquo século XVII. O remetente tentava demover os destinatários de apoiar os invasores. Em dado momento, pergunta: “por que faço guerra com gente de nosso sangue?”.
O tradutor das cartas, Eduardo de Almeida Navarro, é organizador de um dicionário de tupi antigo; além de um trabalho sobre os nomes de origem indígena dos municípios de São Paulo.
Essa conversa, há quase 400 anos, é um dos poucos documentos que temos diretamente produzidos a partir da perspectiva dos indígenas. Especialmente em tupi.
É interessante ver os argumentos de Felipe Camarão, o remetente: apela ao sentimento, alegando estar agindo como pai de Pedro Poti e Antônio Paraupaba, os destinatários, tentando protege-los da morte certa.
O fato de os holandeses terem concedido títulos aos dois, pela aliança, não os salvaria em caso de captura. Apenas europeus tinham direito ao perdão.
Não se sabe qual foi a resposta dos dois a Felipe Camarão, mas é possível imaginar que ambos buscavam alternativas ao domínio português e foram seduzidos.
Hoje está na moda dizer que deveríamos aprender com os saberes indígenas a respeitar as florestas, conviver em harmonia com a natureza. Bem dito. Talvez uma boa forma de começar seja olhando as heranças mais latentes em nossa sociedade.
Você vive a língua que fala, saber de onde ela veio é o primeiro passo para qualquer imersão mais profunda. Já dizia o poeta: “o coração do pensamento, palavra”.
*O caso do culturema lágrimas/pitangas está no artigo “Memória cultural do Brasil colônia em ‘chorar as pitangas’”, de Nancy Araraki.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.