Castelo de Areia
Quando chego em casa, umas 9 e pouco da noite, Jaqueline está na mesa de jantar me esperando para comer. Ela me pergunta como está sendo escrever um romance.
"Aos trancos e barrancos.", eu respondo.
"Se fosse depender de você e desse seu livro, estaríamos passando fome."
"Vai começar?"
"Começar o quê?"
"Você sabe que eu trabalho e que eu chego cansado e, mesmo assim, estou me esforçando para continuar tentando escrever."
"Não tente, apenas faça, então."
"É o que eu estou tentando fazer."
"Não é o que parece."
"E como é que tem que parecer?"
"Esquece, tá?! Não tá mais aqui quem perguntou."
Fico pensando qual seria a reação dela se ela descobrisse que eu nem comecei a escrever o livro. Há um silêncio entre nós, apenas o som da TV habita a sala.
"Quando eu terminar de escrever esse livro, prometo que nós vamos mudar de vida."
"Quando isso vai acontecer?"
"Eu ainda não sei."
Outro silêncio toma conta.
"Amanhã eu vou estar de folga, deixa que eu vou buscar a Sophia amanhã na escola e, nós passamos o dia juntos."
Jaque apenas balança a cabeça positivamente.
Tantos pais esperam seus filhos na escola hoje. E um mar de crianças surge como um tsunami inundando uma praia, quando o bate o sinal. Ela vem correndo até mim quando me vê. Pergunta o que eu faço aqui? Vim te buscar, respondo. Hoje o papai tá de folga.
"O que acha da gente ir até a sorveteria?"
"Vamos.", ela responde alegremente.
Indo até a sorveteria, Sophia conta tudo o que ela fez na aula e diz que acha que é a aluna mais inteligente da sala. Puxou o papai, digo a ela.
"É.", ela responde e ri.
Seguimos conversando até a sorveteria que tem umas mesas do lado de fora. Nessa sorveteria tem picolés, sorvetes e você pode até fazer o seu self-service de sorvete. Nos sentamos em uma
delas. Vai lá fazer o seu pedido, digo a ela. Saltitantemente e com um sorriso no rosto ela vai. Minutos depois ela volta com um cascão e duas bolas enormes sabores Flocos e Chiclete e Cobertura de Morango. Não vai pedir o seu, pai? Vou, daqui a pouco, eu respondo. Eu olho para ela e sorrio e ela sorri de volta.
"E o livro que você tá escrevendo, pai? Eu ouvi você e a mamãe discutir sobre isso ontem."
"Mas tu já não tava dormindo, mocinha?"
"É que ouvi vocês discutirem."
"Não foi uma discussão. Sua mãe só perguntou sobre o livro que eu NEM comecei a escrever."
"Ela sabe que você nem começou a escrever?"
"Sabe nada. E não vai contar pra ela, hein? Ela me mata."
Sophia abre um sorriso.
"Pode deixar, pai."
Eu abro um sorriso.
"É que eu não sei sobre o que escrever."
"Por que não para de pensar um pouco nisso? Aí quem sabe, alguma hora, uma ideia apareça do nada."
Sophia termina o sorvete.
"É uma boa ideia."
"Pai, quero mais uma casquinha!"
"Okay. Vai lá pedir."
Sophia sai correndo para dentro da sorveteria. Sem demorar muito, ela volta com outra casquinha de sorvete. Ela não demora a terminar, então eu pago a conta e aproveito para pegar um picolé recheado sabor açaí com banana e então vamos embora.
Quando chegamos em casa, Sophia e eu mal entramos em casa e vemos Jaqueline de pé andando de um lado para o outro esperando por nós, com o notebook em cima do sofá na página em branco.
"Esse é o seu grande romance?"
"O que?"
"E eu acho que vou pro meu quarto."
Sophia vai para o quarto sem que percebessemos na hora.
"Seu romance são páginas em branco?!"
"Você está querendo brigar por causa disso?"
"A quanto tempo você me diz que quando terminar esse romance, vai mudar nossas vidas? Eu confiei em você todo esse tempo."
"Você sabe a dificuldade que é para escrever algo?"
"Isso não importa agora. O que importa é que você não me disse a verdade. E pelo jeito, não pretendia me contar."
"Só quando eu terminasse."
"Ou seja, nunca."
"Perto disso."
"Cala a boca."
O clima na sala está tenso.
"Eu tô indo pra casa da minha mãe e Sophia vem comigo. SOPHIA! Arrume suas coisas, pegue algumas roupas. Vamos para casa da sua vó!"
"Pra que levar ela? E a escola?"
"Ela pode faltar alguns dias."
Jaqueline vai para o nosso quarto juntar algumas roupas e as colocar em uma mala. Vejo Sophia saindo do quarto com a mochila, provavelmente com as roupas dentro. Ela vem até mim, me olha. Eu agacho e a abraço, ela me abraça de volta. Jaqueline sai do quarto com uma mala em mãos e chama por Sophia. A gente se separa. Sophia vai ao lado de Jaqueline. O irmão dela veio buscá-la para levá-la à casa da mãe dela. Eu nem me dou o trabalho de ir cumprimentá-lo. Nem vale a pena.
Meu pai está no mesmo lugar do bar. Sem pensar duas vezes, me junto à ele. Peço que traga outro copo. Meu pai nem pergunta o que eu estou fazendo ali. Um rapaz traz o copo. Antes de tudo, meu pai preenche o copo até o topo com o resto da cerveja que ainda havia na garrafa. Um silêncio predominava até que a voz rouca de meu pai espanta o silêncio.
"O que faz aqui?"
"Jaqueline descobriu que eu não tava escrevendo romance nenhum."
Ele faz um sinal com os dedos para que traga outra garrafa. Suas expressões continuam as mesmas.
"E por que está aqui?"
"Para beber um pouco e esquecer isso."
"Que nem seu pai.", ele sorri um sorriso discreto de canto de boca.
"Como assim que nem você?"
"Esquece."
"Agora me conta. Eu quero saber. Qual a semelhança que eu tenho com você?"
"Não. Você não vai entender."
"Eu passei a minha toda sem entender nada sobre você. Quem sabe se você explicar agora, eu entenda alguma coisa."
Ele bebe outro gole. Solta o ar pela boca.
"Eu sei que não cuidei direito de você desde que sua mãe morreu."
"Ainda bem que você sabe disso."
"Por favor, deixa eu continuar. Eu era muito imaturo pra cuidar de um filho, ainda sou. Então a melhor coisa para se fazer era ficar aqui bebendo, assim não tinha que pensar nisso. Mas olha pra você. Veja o homem que você se tornou. Eu tenho mérito nisso. O mérito que eu carrego é não ter feito parte disso. Você não é obrigado a me chamar de pai. Você quebrou um ciclo. Meu pai também não era grande coisa. Ele tava sempre bêbado e quando chegava em casa, batia na minha mãe. Ela nunca prestou queixa por isso. Foi numa noite, eu tinha dezessete anos. Ele chegou muito bêbado em casa, e quando ele arrombou a porta, era pra matar minha mãe, sem motivo aparente. Então eu reagi. Parti pra cima dele. Ele caiu no chão. Os vizinhos chamaram a polícia e ele foi levado pra prisão naquela noite. Convenci a minha mãe a prestar queixa contra ele. Ela o fez. Desde então, nunca mais voltei a vê-lo."
Fiqui em silêncio. Bebemos nossos goles.
Ele quebra o silêncio.
"Por que não transforma isso em um romance?"
"O que? Não. Pra que?"
"Isso faria sucesso, não acha? Eu deixo.", ele dá uma risada com tosse no final.
Eu não disse mais nada. Seguimos bebendo.
Meu celular toca.
É Jaqueline.
Eu atendo.
"Sim?"
"Papai?"
Me levanto e me afasto um pouco dali. Meu pai fica me olhando por um breve momento. Sim, filha, respondo.
"Tá ocupado? Pedi o celular da mamãe pra falar com você."
"Não. Pode falar."
"É que essa noite eu tive um sonho."
"Conta pro pai, então."
"Eu ia contar pra você e pra mamãe em casa. Mas..."
"Sei, então conta agora."
"Sonhei que nós estávamos em uma praia. Todos parecíamos felizes como uma família unida. Mamãe tomava sol e eu e você brincávamos. Construíamos um castelo de areia, um enorme. Disse a vocês que o papai seria o rei, a mamãe, a rainha e eu a princesa desse castelo. Num reino tão tão distante, onde vocês eram felizes juntos."
"Mas nós somos felizes juntos. Só estamos dando um tempo."
"Mas eu ouvi a mamãe dizer para a vovó que quer se separar de você."
A ligação cai. A bateria do meu celular acabou e o celular desliga. Não há mais nada que eu possa fazer.
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Este artigo foi escrito por Marcos Araújo e publicado originalmente em Prensa.li.